01/10/2012 por Andrei Pitten Velloso
A denominada substituição tributária “para frente” ou “progressiva” é uma técnica impositiva que atribui a contribuinte situado em etapa antecedente da cadeia econômica (denominado “substituto”) a responsabilidade de recolher antecipadamente o tributo que seria devido por operação futura, apurando-o com base num valor estimado, pois a operação levada em consideração (a ser praticada pelo “substituído”) ainda não ocorreu.
Este esquema, em que o industrial vende diretamente ao varejista e figura como o único responsável pelo recolhimento do imposto, permite elucidar como funciona a sistemática da substituição tributária progressiva, que no exemplo dado dispensa a administração tributária de fiscalizar as empresas varejistas, concentrando os seus esforços nas indústrias:
Embora não seja obrigado a recolher tributo algum, o substituído é de extrema importância na estrutura normativa da substituição progressiva. A base de cálculo diz respeito à operação futura do substituído (denominada fato gerador presumido), sendo determinada por estimativa. A alíquota aplicada é a prevista para a operação substituída, e não para a do substituto. Se o tributo estiver sujeito ao princípio da não cumulatividade, o montante devido pela operação própria do substituto deve ser compensado com aquele relativo à operação futura do substituído. E caso o fato gerador presumido não se verifique, a quantia paga deverá ser imediatamente restituída (art. 150, § 7º, da Constituição Federal), mas não àquele que a pagou, senão ao substituído.
A substituição tributária progressiva era (e ainda é) objeto de fortes críticas por parte da doutrina, tendo em vista que a exigibilidade do tributo precede a ocorrência do fato gerador presumido e, além disso, o quantum a pagar não é calculado em função da sua efetiva dimensão econômica, mas de uma base estimada. Alega-se, por conseguinte, violação aos princípios da legalidade estrita, da capacidade contributiva, da não cumulatividade, do não confisco etc.
Para afastar as impugnações à legitimidade do instituto da substituição progressiva, a EC 3/93 incluiu o § 7º ao art. 150 da Constituição da República, autorizando expressamente a sua adoção, nos seguintes termos: “A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de impostos ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.”
O novel dispositivo constitucional assegurou a restituição do tributo na hipótese de inocorrência do fato gerador presumido. No entanto, não dispôs especificamente quanto à ocorrência do fato imponível com uma consistência econômica inferior à presumida, dando margem a questionamentos atinentes à existência, ou não, de direito à restituição parcial da quantia paga, proporcionalmente à diferença entre a base imponível presumida e a efetiva.
Levada a controvérsia ao Supremo Tribunal Federal, a Corte, que sempre pronunciou a constitucionalidade da substituição tributária progressiva por se tratar de relevante instrumento voltado à praticabilidade e ao combate à evasão, declarou a inexistência de direito constitucional à restituição parcial do tributo, considerando, novamente com base em argumentos pragmáticos, que o fato imponível presumido “não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo à restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não-realização final. Admitir o contrário valeria por despojar-se o instituto das vantagens que determinaram a sua concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e celeridade às atividades de tributação e arrecadação” (ADI 1.851, rel. Min. Ilmar Galvão, 5.2002, excerto da ementa). Dessa forma, o contribuinte somente teria direito à restituição da diferença se o legislador o reconhecesse expressamente.
A despeito desse importante precedente, a questão ainda não está consolidada. Pelo contrário, será novamente enfrentada pelo Plenário do Supremo, no julgamento do RE 593.849, rel. Min. Ricardo Lewandowski, cuja repercussão geral foi reconhecida em setembro de 2009.
O renascimento da controvérsia decorreu da proposta de releitura da decisão proferida na ADI 1.851 à luz do ato normativo impugnado na mencionada ação direta, que proibia a restituição e a cobrança suplementar do imposto quando a operação subsequente se realizasse com valor diverso daquele fixado pela legislação.
A proposta partiu do Ministro Cezar Peluso, que, ao relatar e proferir o seu voto na ADI 2.777, assinalou versar a ADI 1.851 sobre regime facultativo de substituição tributária, entendido como autêntico benefício fiscal. Portanto, o precedente firmado na ocasião não seria aplicável aos regimes cogentes, abrindo ensejo à reapreciação da questão atinente à existência de um direito constitucional à restituição da diferença do tributo nas vendas por valores inferiores ao presumido, que reconheceu em seu voto, pela improcedência da ação direta movida pelo Governador do Estado de São Paulo, contra dispositivo da Lei 6.374/89, adicionado pela Lei 9.716/95, ambas do Estado de São Paulo, que autorizava a aludida restituição da diferença.
Daí o reconhecimento da repercussão geral da controvérsia constitucional, sem reafirmação da jurisprudência, no RE 593.489, com fundamento na constatação de que “a matéria em debate está em discussão no Plenário desta Corte – ADI 2.675/PE, Rel. Min. Carlos Velloso e ADI 2.777/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, cujo julgamento já foi iniciado, mas não concluído”. Após o reconhecimento da repercussão geral, o Plenário do STF deliberou por suspender a tramitação das ADIs 2.777 e 2.675, a fim de aguardar o julgamento do RE 593.489.
Dada a indefinição do tema na Suprema Corte, as reclamações interpostas pelo Fisco têm sido rejeitadas de plano, como se denota, v.g., da decisão monocrática proferida pela Ministra Rosa Weber na Reclamação nº 13.645, publicada em 6/9/2012.
Quanto ao mérito da controvérsia, assiste razão aos contribuintes. O art. 150, § 7º, da Constituição da República consagra o direito à restituição da quantia paga “caso não se realize o fato gerador presumido”, aplicando-se tanto à não realização total quanto à parcial, em que o fato gerador presumido ocorre, mas com dimensão econômica inferior à presumida.
Entendimento diverso, no sentido do caráter absoluto da presunção, implicaria visível afronta à Lei Maior, seja pela violação da garantia constitucional da “imediata e preferencial restituição da quantia paga” na hipótese de não realização, total ou parcial, do fato gerador presumido (art. 150, § 7º), seja pelas iniquidades advindas da sujeição de fatos díspares a carga tributária idêntica, que vilipendiam o princípio da isonomia tributária, seja, ainda, pela extrapolação dos limites materiais das competências impositivas, mediante a tributação de valores fictícios, que malfere os princípios da capacidade contributiva e do não confisco.
Poder-se-ia argumentar, na linha do consignado na ementa da ADI 1.851, que o reconhecimento do direito à restituição do excesso afetaria a praticabilidade tributária e, assim, daria ensejo à ocorrência da evasão fiscal e, por conseguinte, de severas desigualdades na aplicação da lei. Não se afigura impraticável, contudo, reconhecer o direito à restituição da diferença, mediante a imposição, aos contribuintes, do ônus de comprovar, pela apresentação de documentos fiscais idôneos, que as operações por si praticadas não tiveram a expressão econômica presumida pelo legislador. Eventuais fraudes, por óbvio, devem ser sancionadas com rigor.
Tutelar os direitos fundamentais dos contribuintes – e penalizar, sem hesitação, a sonegação tributária. Eis o norte que a legislação e a jurisprudência tributárias devem seguir.
Fonte: Carta Capital
Site: Contabilidade SP