Por Bárbara Pombo | De Brasília
A Receita Federal está ganhando, no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), uma disputa bilionária contra multinacionais dos setores farmacêutico, automotivo e de tecnologia. Em discussão está o valor de insumos importados que essas empresas devem registrar nas prestações de contas ao Fisco e que afetam diretamente o cálculo do Imposto de Renda (IR) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) – no que se chama tecnicamente de preço de transferência. A disputa, considerada uma das mais complexas e controversas no órgão, é acompanhada de perto pelo governo.
Está em discussão cerca de R$ 8,1 bilhões em cobranças contra 350 companhias, realizadas a partir de 2004 pela Receita. Empresas como LG, Pfizer, Sanofi e Delphi já tiveram seus casos julgados pelo órgão do Ministério da Fazenda responsável por avaliar recursos de contribuintes contra autuações fiscais. De 12 julgamentos realizados desde 2010, dez foram favoráveis à União.
O Conselho está analisando a legalidade da Instrução Normativa nº 243, editada pela Receita Federal em 2002. Para os contribuintes, a norma teria criado um método de cálculo – para estabelecer o valor limite de dedução no IR e na CSLL com gastos na compra de insumos do exterior – mais oneroso e não previsto em lei. A metodologia faz parte das regras do preço de transferência, que estabelece margens de lucro de insumos ou produtos envolvidos em operações com coligadas no exterior. Instituído pela Lei nº 9.430, de 1996, o objetivo da regra é evitar que empresas brasileiras remetam receitas a mais para fora do país com o intuito de recolher menos tributo.
Com pareceres da empresa de auditoria Deloitte e do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP) em mãos, a farmacêutica Pfizer e a empresa de sistemas automotivos Delphi foram as únicas a conseguir vencer na esfera administrativa. A Pfizer conseguiu se livrar de uma cobrança de R$ 22 milhões referente ao ano de 2002. Nos casos, a maioria dos conselheiros de duas turmas de julgamento ficou convencida de que o Fisco, sem respaldo em lei, teria criado uma fórmula que aumenta consideravelmente a base de cálculo dos tributos.
Não foi assim, porém, que entenderam os conselheiros em outros dez casos. Em julgamento de novembro, o Carf manteve uma cobrança de R$ 91,4 milhões da LG. A autuação é referente ao ano de 2003. Na ocasião, os julgadores entenderam que a instrução normativa é legal, pois da interpretação da lei que instituiu o preço de transferência pode-se retirar diversas formas de cálculo. Dessa decisão, a empresa pode recorrer dentro do próprio Carf para a Câmara Superior. E ainda há a possibilidade de questionar a cobrança no Judiciário. O Valor não conseguiu localizar representantes da LG para comentar a decisão.
Até a edição da IN nº 243 vigorava a regra prevista na IN nº 32, de 2001. Por esta norma, o valor agregado do produto não era totalmente excluído para cálculo do limite autorizado para dedução no IR e na CSLL. A partir de 2002, porém, o valor agregado no produto para revenda foi retirado do cálculo. Isso, na prática, diminuiu o limite de descontos na apuração dos tributos e, consequentemente, aumentou o montante a ser recolhido. “O novo método atende melhor a finalidade da lei de evitar a manipulação de preços de importados e o pagamento de um menor valor de tributos”, diz o procurador da Fazenda Nacional Moisés de Sousa Carvalho.
Ao analisar o caso da farmacêutica Sanofi, além de decidir pela legalidade da instrução normativa, os conselheiros concluíram que “apesar de a IN 243 alterar a IN 32, isso não significa dizer que ela extrapolou a autorização legal”. Por meio de nota, a Sanofi informou que ainda não foi intimada da decisão e “permanece confiante na qualidade do direito que fundamenta o seu pleito”.
Para a advogada da Pfizer e da Delphi, Luciana Galhardo, sócia do escritório Pinheiro Neto Advogados, três aspectos contam a favor dos contribuintes: os pareceres, o tempo de análise do assunto no Carf e a recente mudança nas regras do preço de transferência por meio da Medida Provisória nº 563 – que poderá ser convertida em lei nos próximos dias. “A necessidade de incluir a regra em medida provisória comprova a falta de previsão legal”, diz. O procurador da Fazenda Nacional afirma, entretanto, que a “medida provisória veio acabar com o litígio e não para legalizar a regra”.
Os dois processos são considerados por tributaristas excelentes precedentes para discutir a questão e tentar reverter decisões desfavoráveis às empresas na Câmara Superior do órgão, última instância administrativa. No Carf, o requisito para recorrer de decisões de turmas é apresentar um acórdão com entendimento diferente.
A expectativa de advogados e dos procuradores da Fazenda é que todos os casos analisados até agora cheguem à Câmara Superior. De nove turmas ordinárias do conselho, apenas uma ainda não analisou a questão. A 1ª Turma da 1ª Câmara, porém, deve julgar um recurso da farmacêutica Eli Lilly do Brasil em setembro. “O cenário favorável à Fazenda é mais um argumento, mas não é decisivo”, diz o procurador da Fazenda. “Na Câmara Superior, a discussão começa praticamente da estaca zero.”
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