Rogério David Carneiro*
1 – Introdução
O Supremo advertiu: irá fazer publicar uma súmula vinculante, capaz de colocar por terra todos os incentivos fiscais estaduais de ICMS concedidos à revelia do CONFAZ e, de uma vez por todas, demover do cenário jurídico e político brasileiro o uso de instrumentos fiscais do repertório de políticas estaduais de desenvolvimento. É a proposta de Súmula Vinculante de número 69.
Será o fim da chamada guerra fiscal (expressão replicada incansavelmente pela imprensa, quando o adequado seria, no mais das vezes, o uso da expressão “disputa”)? Será ainda que, de acordo com os princípios constitucionais hoje vigentes, todos os incentivos estaduais merecem o mesmo tratamento e destino?
Num país com a alta carga tributária como a nossa, uma iniciativa que reduza o impacto da tributação deveria ser elogiada. Mas então, porque tantas críticas e ataques a essa prática dos entes federados? Será que tais práticas são feitas apenas por governadores que teimam em fazer o mal ou existem motivações de caráter público para que assim procedam?
2 – A Concessão de Benefícios Fiscais sem a Aprovação do CONFAZ
Como se sabe, os Estados que compõem a federação não raras vezes disputam entre si a preferência pelos empreendimentos empresariais que pretendem se estabelecer em determinada região do País. Para se posicionar como aptos a receberem determinados conglomerados, os entes oferecem terrenos terraplanados, infraestrutura privilegiada, garantia de acesso a portos e rodovias e, por fim, algum atrativo fiscal, no mais das vezes, no que tange ao ICMS.
Tais benefícios revestem-se das mais variadas formas, através da concessão de créditos presumidos, redução de alíquotas, financiamento de parte do ICMS recolhido e etc. Nesse ponto, a criatividade das equipes econômicas anda sempre à frente dos técnicos legislativos.
Os Estados que se sentem prejudicados adotam dois caminhos: ora ingressam com ações diretas de inconstitucionalidades sobre as leis do outro ente federativo, indo à discussão direto para o STF; ora glosam os créditos fiscais dos contribuintes situados em seu território, o que deságua num litigio judicial que não raro, chega também à Suprema Corte.
Em junho de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais 23 formas de incentivos fiscais que envolvem redução do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para atrair empresas. O fundamento, em síntese, é a ofensa aos arts. 150, § 6º, 152 e 155, § 2º, inc. XII, letra “g”, da Constituição Federal.
Conjugando tais dispositivos constitucionais, a conclusão a que chegou a Suprema Corte foi no sentido de que o legislador constituinte quis reservar à lei complementar a regulação sobre a concessão de subsídios, isenções, redução de base de cálculo, crédito presumido, anistias, benefícios fiscais enfim, qualquer redução de encargo que diga respeito ao ônus gerado pelo ICMS.
Essa Lei Complementar é a de nº 24, de 07 de janeiro de 1975 (anterior à nova ordem constitucional inaugurada com a Carta Magna de 1988 e, ainda sob o regime antidemocrático que o País presenciou) que dispõe sobre a celebração dos convênios para a concessão de isenções de ICMS no âmbito do CONFAZ – Conselho Nacional de Política Fazendária. Esse conselho reúne todos os Secretários Estaduais de Fazenda para celebrarem, através de convênio, qualquer prática que resulte na redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus devido por força do ICMS.
A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados. Somente o Estado do Amazonas foi privilegiado. Excluído dessa regra, pode essa unidade federada conceder qualquer beneficio sem observar aprovação pelo CONFAZ.
3 – Proposta de Súmula Vinculante 69
Os Estados, por sua vez, fingiram não entender o recado do STF. Mesmo com esse volume de ações julgadas de uma só vez, sendo todas com o mesmo desfecho (concessão de benefícios sem a existência de suporte em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ redunda em inconstitucionalidade da lei estadual) continuaram com a mesma prática: a concessão de benefícios sem a aprovação do CONFAZ.
Nesse cenário, achou por bem o Min. Gilmar Mendes propor um edital de súmula vinculante sobre o tema, cujo verbete é o seguinte:
“Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional.”
Caso a Súmula Vinculante prospere, todos os incentivos fiscais concedidos sem a aprovação do CONFAZ terão o mesmo destino: a marginalidade. Os Estados “concorrentes” poderão reclamar direto ao Supremo alegando o descumprimento da dita súmula, o que será um caminho célere para derrubar o incentivo, se comparado com o rito clássico das ADIs ajuizadas até hoje.
A redação da proposta da súmula lança apenas uma ótica sobre a problemática que visa extirpar do cenário jurídico nacional: a ausência de chancela unânime do CONFAZ. Todavia, a exigência de unanimidade do CONFAZ soa estranha se considerarmos os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, inaugurados com a vigência da nova ordem constitucional de 1988.
4 – Uma nova ótica sobre a questão. ADPF 198
Essa ótica não é nova. Encontra-se em trâmite no mesmo STF desde 2009 uma ação judicial de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 198), de inciativa do governador do Distrito Federal, onde se questionam os artigos 2º, § 2º, e 4º da Lei Complementar nº 24/75, por violação ao artigo 1º da Constituição da República, na medida em que ofenderia o princípio democrático, o princípio federativo e o princípio da proporcionalidade. Inúmeros entes federados ingressaram no feito na qualidade de amicus curiae.
É de acrescer ainda, aos argumentos expostos na ADPF, que a necessidade de aprovação unânime do CONFAZ violaria, em alguns casos, o disposto no artigo 3º, III da Carta Magna. Como se sabe, a carta republicana, quando emprega verbos de ação em seu texto, é no intuito de dirigir, dar um norte pelo qual os Governantes deverão seguir. Ao determinar a obrigação de se buscar a redução das desigualdades sociais e regionais, um incentivo icemista que se molde a essa finalidade seria de bate-e-pronto inconstitucional?
Já nos ensinou o advogado dos advogados, mestre Rui Barbosa, que:
“Não há, numa constituição, cláusulas a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativas de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos”
Comentários à Constituição Federal Brasileira, II, p. 489). Se diante de uma possibilidade de reduzir a pobreza de determinada região, o governante visse como opção atrair determinando empreendimento por meio incentivos fiscais, e esse empreendimento trouxesse emprego, renda, redução de desigualdade e mais ainda, aumento de arrecadação, não estaria ele cumprindo os objetivos da Carta da República?
Esperar que todos os Estados primeiramente aceitem que uma unidade federada incentive esse ou aquele empreendimento ou setor, ainda que provoque eventualmente a não instalação de empreendimento em seu território, seria, ao nosso ver, ingênuo.
Tomemos como exemplo o clássico caso da disputa (e não guerra) pela instalação da montadora Ford Motors entre as cidades de Gravataí (RS) e Camaçari (BA).
Ambos os Estados envolvidos acenaram com incentivos fiscais para atrair dito empreendimento. Era de se esperar que na reunião do CONFAZ, o Secretário de Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul anuísse com o benefício que foi concedido pelo Estado da Bahia e vice-e-versa? Some-se ainda o Estado de São Paulo, o mais industrializado, que usualmente não aprova incentivos com esse propósito.
5 – Conclusão
A questão deveria ser encarada como uma colisão de preceitos constitucionais. Se por um lado há aqueles que apontam a inconstitucionalidade do incentivo concedido unilateralmente por uma unidade federada, por outro nos parece inegável afirmar que em vários casos a concessão do incentivo vem justamente em homenagem ao primado constitucional de redução da desigualdade, social e regional. Como ponderar ambos os interesses?
Talvez somente com a análise de cada caso concreto. Há incentivos que concretamente não se traduzem em qualquer melhora na qualidade de vida da população, instituídos para agradar determinado grupo, sem ao menos exigir alguma contrapartida do empreendimento incentivado. Já outros reduzem a olhos vistos a miséria de determinada região, melhoram a realidade dos que ali vivem, produzem renda e ainda aumentam a arrecadação tributária da unidade federada. Não há uma única das 26 unidades federadas que não tenha lançado mão desse instrumento, a que se deve e muito o desenvolvimento regional.
Por conta dessa realidade fática é que não se mostra razoável lançar apenas uma ótica sobre a problemática dos incentivos fiscais de ICMS concedidos à revelia do CONFAZ. Mais ainda, colocar em pauta uma proposta de súmula vinculante, sem antes examinar a ADPF 198, em trâmite desde 2009 e que discute exatamente a não recepção pela Carta Constituinte de 1988 dos dispositivos que conferem à unanimidade de um órgão do executivo (CONFAZ) a sorte do desenvolvimento das unidades federadas. É a reflexão a que se propõe.
Fonte: FISCOSoft