José Luis Ribeiro Brazuna e Pedro Paulo Bresciani
1 – Introdução
A dúvida que se apresenta diz respeito à aplicação ou não da redução de base de cálculo do ICMS a 12%, prevista para os produtos alimentícios listados no artigo 39, Anexo II, do Regulamento do ICMS do Estado de São Paulo, aprovado pelo Decreto nº 45.490, de 30 de novembro de 2000 (“RICMS/SP”), para operações sujeitas ao regime de substituição tributária (“ICMS-ST”).
Contrariamente à aplicação do benefício a esse tipo de operação, poderiam ser levantados os seguintes pontos:
– que, diferentemente do artigo 3º, inc. II, do Anexo II, do RICMS/SP, por exemplo, que contempla uma redução de base de cálculo objetiva para os produtos da cesta básica, o artigo 39 compreenderia um benefício fiscal de natureza objetiva e subjetiva para os produtos alimentícios ali indicados;
– assim, além de ser necessário que a mercadoria se enquadre na descrição objetiva dos seus incisos, o artigo 39, Anexo II, do RICMS/SP, demandaria também que o contribuinte preenchesse a condição de “fabricante” ou “atacadista”;
– a redução de base de cálculo não poderia ser estendida, dessa forma, aos estabelecimentos “varejistas”, o que por conseqüência impossibilitaria a sua aplicação às operações realizadas por esse tipo de contribuinte ao longo da cadeia de circulação de mercadoria submetida ao regime de pagamento do ICMS por substituição tributária; e
– sendo o ICMS-ST uma antecipação do imposto devido ao longo de toda a cadeia, até a chegada da mercadoria ao consumidor final, a redução de base de cálculo teria a sua aplicação obstada pela norma do artigo 39, § 1º, item 2, alínea “b”, Anexo II, do RICMS/SP, que impede a fruição do benefício na “saída destinada a consumidor final”.
Em nossa opinião, entretanto, a norma do artigo 39, Anexo II, do RICMS/SP aplica-se tanto ao ICMS incidente sobre a operação própria (“ICMS-próprio”), quanto ao ICMS-ST a serem recolhidos nas saídas internas promovidas pelos estabelecimentos fabricantes dos produtos mencionados no artigo 39, pois, como a seguir esmiuçado:
(i) é isso o que se extrai da interpretação histórica da legislação pertinente, em especial do Decreto nº 52.957, de 5 de maio de 2008;
(ii) é essa a orientação da própria Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (“SEFAZ-SP”) a respeito do tema, firmada na Decisão Normativa CAT nº 1, de 15 de abril de 2008 (“DN 1/2008”); e
(iii) interpretar de maneira diversa implicaria desrespeito à norma do artigo 111, do Código Tributário Nacional (“CTN”).
2 – Análise histórica
O artigo 39, do Anexo II, do RICMS/SP, permite que as saídas dos produtos listados nos seus incisos usufruam de redução de base de cálculo de ICMS, de forma que a carga tributária de imposto resultante equivalha a 12% (doze por cento).
Além da já referida restrição quanto às operações que destinem mercadorias a consumidores finais, a legislação em vigor impõe outros requisitos para a aplicação do benefício, quais sejam:
(i) a destinação dos produtos à alimentação humana é obrigatória (art. 39, §1º, item 1, alínea “a”, do Anexo II, do RICMS/SP);
(ii) não pode haver cumulação com outros benefícios fiscais previstos no RICMS/SP (art. 39, §1º, item 1, alínea “c”, do Anexo II, do RICMS/SP);
(iii) o contribuinte deve estar em situação regular (01) perante o Fisco (art. 39, §4º, do Anexo II, do RICMS/SP); e
(iv) a mercadoria não pode se destinar a contribuintes sujeitos às normas do Simples Nacional (art. 39, §1º, item 2, alínea “a”, do Anexo II, do RICMS/SP).
O benefício em questão foi criado em 2004, por meio do Decreto nº 49.113, no contexto da chamada “primavera tributária”, período em que o governo paulista concedeu uma série de favores fiscais para diferentes setores econômicos, com os objetivos de estimular a competitividade da indústria paulista e combater a prática de guerra fiscal por outras Unidades da Federação.
Na sua redação original, o artigo 39 fazia expressa referência, no seu § 1º, item 1, alínea “b”, à impossibilidade de aplicação da redução de base de cálculo “aos produtos sujeitos ao regime de substituição tributária”. Já constava da redação original, além disso, a cláusula de afastamento do benefício fiscal para os casos de “saída destinada a consumidor final” (§ 1º, item 2, alínea “b”).
Nítido, portanto, que, aos olhos do próprio legislador paulista, a cláusula de restrição do benefício fiscal prevista no item 2, “b”, não se aplicava aos casos de substituição tributária, sob pena de inutilidade (02) da cláusula do item 1, “b”.
Tal conclusão ficou ainda mais evidente em 2008, quando, por meio do Decreto nº 56.857, de 5 de maio, a ressalva relativa aos produtos sujeitos à substituição tributária foi retirada do artigo 39, com fundamento na seguinte justificativa, apresentada pelo secretário de fazenda ao governador paulista de então:
“Com a proposta de revogação da alínea “b” do item 1 do § 1º do referido artigo 39, o benefício da redução da base de cálculo passa a ser aplicável também aos produtos sujeitos ao regime da substituição tributária.
A medida visa atribuir aos produtos alimentícios o mesmo tratamento tributário dispensado aos perfumes, cosméticos e produtos de higiene pessoal que, conforme previsto no artigo 34 do Anexo II do Regulamento do ICMS, também são beneficiados com a redução da base de cálculo nos mesmos termos dos produtos alimentícios.” (Ofício GS nº 200/2008)
Analisada, portanto, a evolução da legislação paulista que fundamenta o benefício fiscal do artigo 39, resta claro e cristalino que, se em um momento inicial era afastada a sua aplicação às operações com produtos sujeitos ao ICMS-ST, desde maio de 2008, com a alteração promovida pelo Decreto nº 56.857, essa limitação não mais se justifica.
3 – Importância da DN 1/2008
No que diz respeito especificamente aos perfumes, cosméticos e produtos de higiene pessoal, citados no Ofício GS nº 200/2008 acima referido, houve posicionamento específico e de caráter normativo, por parte da SEFAZ-SP, acerca da aplicação ou não da redução de base de cálculo do artigo 34, Anexo II, do RICMS/SP, a operações sujeitas a redução de base de cálculo do ICMS.
Em princípio, os mesmos questionamentos apontados no tópico I acima seriam oponíveis à fruição desse benefício nas operações sujeitas ao ICMS-ST, pois, também nesse caso, o dispositivo regulamentar refere-se à saída interna realizada por estabelecimento “fabricante” ou “atacadista” (artigo 34, caput) e veda a aplicação da redução à “saída destinada a consumidor final” (artigo 34, § 1º, item I, alínea “b”). Nessa hipótese, ademais, a redação original do artigo 34 não continha regra específica tratando dos produtos sujeitos a substituição tributária.
Foi nesse contexto que, em 15 de abril de 2008, tratando da subespécie de substituição tributária prevista no artigo 426-A, do RICMS/SP (“ICMS-antecipação”), a SEFAZ-SP assegurou a aplicação da redução de base de cálculo prevista no artigo 34, ainda que a entrada de mercadoria no Estado de São Paulo fosse promovida por contribuinte “varejista” (03).
Ao mesmo tempo em que afastou a cláusula de restrição para saídas a consumidor final, como se vê, a administração tributária paulista ainda relativizou a referência a estabelecimento “fabricante” ou “atacadista” feita no caput do artigo 34, permitindo o pleno aproveitamento do benefício, inclusive quando a responsabilidade pelo recolhimento do imposto sobre toda a cadeia, por substituição tributária na modalidade ICMS-antecipação, recaía sobre contribuinte enquadrado na condição de mero “varejista”.
Foi com base na posição assim firmada pelo Fisco paulista, com força de norma complementar à legislação tributária (04), que o governador de São Paulo, por meio daquele Decreto nº 56.857/2008, promoveu a devida adequação da redação do artigo 39, Anexo II, do RICMS/SP, assegurando, nas já mencionadas palavras do Secretário de Fazenda, “atribuir aos produtos alimentícios o mesmo tratamento tributário dispensado aos perfumes, cosméticos e produtos de higiene pessoal”.
Por mais essa razão, portanto, nos parece impossível concluir de outra maneira que não pela fruição da redução de base de cálculo do artigo 39 inclusive nas operações sujeitas ao regime de substituição tributária.
4 – Interpretação “literal” do artigo 111, do CTN
Finalmente, nos parece também relevante fazer referência ao artigo 111, do CTN, que determina a interpretação “literal” da legislação tributária que disponha sobre suspensão ou exclusão do crédito tributário, outorga de isenções ou dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.
Comumente, contribuintes e fiscalização se engalfinham em torno da aplicação desse dispositivo, diante de situações em que, aos olhos do Fisco, determinado evento não se encontra ipsis literis compreendido na norma de desoneração, enquanto que, para o contribuinte, mediante aplicação dos diferentes métodos de exegese, o mesmo evento pode ser alcançado pelo favor fiscal.
Em nosso entender, alinhado a grande parte da doutrina sobre o tema (05), o uso do advérbio “literalmente” pelo artigo 111, do CTN, não significa que as normas de desoneração devem ser interpretadas somente pelo método literal, mas que, pelo contrário, todos os mecanismos de interpretação podem e dever ser utilizados, ficando vedada apenas a integração de lacunas mediante aplicação de analogia. Ou seja, a norma de desoneração deve ser aplicada de maneira “estrita”, sem a possibilidade de extensão analógica a situações similares.
Sendo “estrita”, então, a leitura da regra de redução de base de cálculo (06) do ICMS prevista no artigo 39, devem ser assim interpretados não apenas os elementos positivos, como também os elementos negativos de determinação do alcance do benefício fiscal em questão. Em sendo assim:
– os elementos positivos do artigo 39 indicam que, “estritamente”, o benefício pode ser aplicado:
(i) à saída interna;
(ii) realizada por estabelecimento fabricante ou atacadista;
(iii) dos produtos indicados nos seus incisos;
– enquanto os elementos negativos apontam que a redução de base de cálculo não se aplica:
(a) aos produtos não destinados à alimentação humana;
(b) aos produtos contemplados com qualquer outro benefício fiscal;
(c) à saída destinada a contribuinte sujeito ao Simples Nacional; e
(d) à saída destinada a consumidor final.
Se, na situação concreta do contribuinte, as suas operações atendem a todos os elementos positivos (i) a (iii) acima e não incorrem em nenhuma das hipóteses negativas (a) a (d), é inquestionável, no nosso sentir, o direito à redução de base de cálculo não apenas para o ICMS-próprio, como também para o ICMS-ST incidente sobre os produtos do artigo 39, Anexo II, do RICMS/SP.
Notas
(01) Considera-se em situação regular o contribuinte que não pode possuir: (i) débitos fiscais inscritos em dívida ativa estadual (art. 39, §4º, item 2, alínea “a” do Anexo II do RICMS/SP); (ii) débitos de imposto declarados e não pagos no prazo de 30 dias de seu vencimento (art. 39, §4º, item 2, alínea “b” do Anexo II do RICMS/SP); (iii) débitos de imposto decorrentes de Auto de Infração e Imposição de Multa – AIIM, em relação ao qual não caiba mais defesa ou recurso na esfera administrativa, não pagos no prazo fixado para o seu recolhimento (art. 39, §4º, item 2, alínea “c” do Anexo II do RICMS/SP); e (iv) débitos decorrentes de Auto de Infração e Imposição de Multa – AIIM ainda não julgado definitivamente na esfera administrativa, relativos a crédito indevido do imposto proveniente de operações ou prestações amparadas por benefícios fiscais concedidos sem deliberação conjunta dos Estados e do Distrito Federal (em desacordo com o disposto no artigo 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal) (art. 39, §4º, item 2, alínea “d” do Anexo II do RICMS/SP).
(02) Carlos Maximiliano leciona: “presume-se que a lei não contenha palavras supérfluas; devem todas ser entendidas como escritas adrede para influir no sentido da frase respectiva” (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, Ed. Forense, 17ª edição, p. 110). No mesmo sentido, o Ministro Moreira Alves, apoiado em acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, destacou: “ora, é de boa hermenêutica que a lei não contém palavras supérfluas, todas elas aptas ao esclarecimento do diploma legal” (Recurso Extraordinário n. 94.462-1/SP, de 30.6.1991). Outra não foi a posição do Ministro Marco Aurélio que, ao proferir o seu voto no julgamento do Recurso Extraordinário n. 150.764-1/PE, observou que não é possível atribuir ao legislador palavras inúteis.
(03) “3 – relativamente à questão transcrita no item “6”, cabe o seguinte esclarecimento: o contribuinte paulista, atacadista ou varejista, que receber mercadoria proveniente de outra unidade da Federação, remetida por fabricante, cuja operação estiver sujeita ao recolhimento antecipado do imposto nos termos do artigo 426-A do RICMS/2000, considerando que a operação de saída interna a consumidor final se sujeita, seja à alíquota de 18%, seja de 25%, e que a saída interna promovida por fabricante com destino a estabelecimento atacadista ou varejista é beneficiada com a redução da base de cálculo do imposto, de forma que a carga tributária corresponda ao percentual de 12% (doze por cento), deverá utilizar o percentual de 12% (doze por cento) como ‘ALQ intra’ para calcular o ‘IVA-ST ajustado’ da seguinte forma: IVA-ST ajustado = [(1+IVA-ST original) x (1 – 0,12) / (1 – 0,12)] -1.”
(04) Conforme artigo 100, do CTN, cujo parágrafo único prevê que: “a observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo”.
(05) COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 7ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2004; e TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 4ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
(06) E, na atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não obstante não concordemos com essa conclusão, a figura da redução de base de cálculo é encarada como tendo a mesma natureza de uma isenção parcial do tributo.
Fonte: FISCOSoft