As regras de direito são postas pelo legislador por meio de processo democrático que envolve a escolha de propriedades relevantes para atribuição de determinada conseqüência jurídica. Em matéria de prescrição a Constituição Federal concentrou tal escolha no Congresso Nacional e o obrigou, em matéria tributaria, à utilização do veículo legislativo lei complementar (art. 146, III, “b”, CF/1988), verdadeira lei nacional por estender-se igualmente a todas as unidades federativas.
O Código Tributário Nacional, recepcionado pela Constituição nesta parte como lei complementar, prevê que “a ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.” (art. 174, caput) e a prescrição se interrompe, dentre outros motivos elencados no artigo 1741, “pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal” (art. 174, parágrafo único, I, com redação dada pela LC nº 118/2005).
Apesar de o texto fazer referência a um ato processual específico e determinado, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça entendeu no RESP nº 1.120.295/SP (DJU 21.05.2010), de relatoria do Min. LUIZ FUX, julgado pelo rito dos Recursos Repetitivos (art. 543-C, CPC), que: i) como a citação retroage à data da propositura da ação (art. 219, § 1º, CPC); ii) “é a propositura, e não a citação, que interrompe a prescrição”.
Mencionado entendimento parte da premissa que o art. 219, § 1º, CPC aplica-se aos processos tributários.
Inicialmente, admitida a validade do referido postulado, seu alcance seria restrito ao período de vigência da redação original do art. 174 do Código Tributário Nacional o qual previa a interrupção da prescrição pela “citação pessoal feita ao devedor”, ou seja, até o início da vigência da LC 118/2005 (09.06.2005) que alterou este termo de interrupção para o “despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal”.
Anteriormente à vigência da LC 118/2005 a redação do art. 174 do CTN e do Código de Processo Civil coincidiam em prever a interrupção do prazo prescricional com a citação pessoal o que justificaria eventual interpretação conjunta para se ampliar o direito do Fisco executar o crédito tributário.
Após a vigência da LC 118/2005 deve-se reconhecer a inaplicabilidade do precedente porque não mais coincidem os termos interruptivos. O legislador complementar antecipou o termo interruptivo para reduzir o risco de o credor sujeitar-se a variáveis não controláveis por ele (ocultação do devedor, morosidade do Judiciário etc.).
Portanto, apesar da menção expressa no voto do Relator2 e na ementa do acórdão (item 143), o precedente não pode ser aplicado a período posterior à vigência da LC 118/2005.
Ademais, como o caso envolvia ação ajuizada em 05.03.2002, a LC 118/2005 não fazia parte do pedido ou da causa de pedir e, portanto, não poderia, a rigor (art. 105, III, da CF/1988), ter sido decidida no precedente.
Feita esta distinção temporal, cumpre-nos verificar se o precedente é compatível com a competência para legislar sobre prescrição tributária prevista no art. 146, III, “b” da CF/1988.
Como todo respeito às interpretações em contrário, entendemos que a aplicação irrestrita do art. 219, § 1º do CPC aos processos tributários colide com a regra prevista no Código Tributário Nacional, com a redação vigente na época (até a LC 118/2005), ao criar novo prazo de interrupção de prescrição sem competência para fazê-lo.
Como se vê, a interrupção da prescrição ocorre com a “citação pessoal do devedor” (redação do art. 174, I, CTN, vigente na época) e não na data do ajuizamento como quer fazer crer o acórdão paradigma.
O precedente cria nova causa de interrupção ou de contagem da prescrição fora dos limites da lei complementar (art. 174, CTN) ao aplicar o art. 219, § 1º do CPC em matéria tributária e assim ofende o art. 146, III, “b”, CF/1988.
A previsão de prazo prescricional de dívida tributária é atribuída pela Constituição Federal ao legislador complementar por questões de uniformização e estabilidade das relações jurídico-tributárias entre todos os entes federativos e os sujeitos passivos:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA. RESERVA DE LEI COMPLEMENTAR. LEI ORDINÁRIA QUE DISPÕE DE FORMA CONTRÁRIA ÀQUELA NORMATIZADA EM LEI COMPLEMENTAR DE NORMAS GERAIS. ART. 146, III, B DA CONSTITUIÇÃO. ART. 46 DA LEI 8.212/1991. PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. Viola a reserva de lei complementar para dispor sobre normas gerais em matéria tributária (art. 146, III, b da Constituição) lei ordinária da União que disponha sobre prescrição e decadência. Precedentes. “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-lei 1569/77 e os artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário” (Súmula Vinculante 8). Agravo Regimental conhecido, mas ao qual se nega provimento.” (RE 502648 AgR/SC. Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA. 2ª. Turma. DJU 27.11.2008)
Este entendimento fundamentou a edição da Súmula Vinculante nº 8 que afastou a aplicação do “parágrafo único do artigo 5º do decreto-lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário” por invadirem matéria de lei complementar e colidirem frontalmente com as regras previstas pela Lei Complementar Nacional.
A inconstitucionalidade, portanto, se estabelece por usurpação de competência em afronta à reserva de lei complementar sobre a matéria.
Poder-se-ia alegar que se o credor tomou as providências que lhe competiam (com o ajuizamento) e a citação não ocorreu por inércia do Poder Judiciário ou por ocultação do devedor, não seria justo apenar-lhe com a prescrição de seu crédito.
Esta (citação) sim é matéria de processo civil que pode produzir efeitos sobre a contagem do prazo prescricional previsto na norma tributária (art. 174, CTN).
O ato processual de citação efetivamente depende da atuação do Poder Judiciário e, portanto, a inércia atribuível exclusivamente a este não poderia prejudicar o credor na contagem de seu prazo prescricional por uma questão lógico-jurídica: ninguém pode ser responsabilizado por algo que não pode fazer (em termos lógicos, toda obrigação contém em si uma permissão).
Portanto, o credor deve provocar o Poder Judiciário para citar o devedor pelos meios disponíveis no art. 8º da Lei 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal)4: a) pelo correio; b) por oficial de justiça; c) por edital. Se não o faz, não pode atribuir a inércia ao Judiciário.
Com estes temperos, entendemos plenamente aplicável a Súmula 106/STJ em matéria tributária: “proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência.”
Sua aplicação deve ser feita com cautela porque, além da reserva de lei complementar ao assunto, o Poder Judiciário não é um agente de cobrança dos créditos tributários do Fisco e deve exercer a jurisdição de forma imparcial e equidistante.
Conforme reconhecido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o Exequente é responsável pela movimentação do processo e não pode atribuir a demora no andamento do caso à máquina Judiciária se não promoveu a movimentação do caso.
Por todos citamos o seguinte trecho:
“Vê-se, assim, que a Municipalidade acabou contribuindo para a ocorrência da prescrição, eis que, manteve-se inerte em relação ao andamento processual.
Em que pese o disposto no art. 25 da Lei nº 6.830, não se pode olvidar que cabe à exeqüente promover os atos que darão impulso ao andamento processual, requerendo o que for de direito para que a execução alcance seu objetivo.
Sobre a necessidade da parte manter-se sempre diligente quanto ao processo, o STJ, ao julgar o REsp 502732/PR, expôs entendimento no sentido de que: “A movimentação da máquina judiciária pode restar paralisada por ausência de providências cabíveis ao autor, uma vez que o princípio do impulso oficial não é absoluto.”
Em razão disso, constatando-se que a citação da executada não se efetivou dentro do prazo legal devido à falta de empenho da Municipalidade, não há como deixar de reconhecer a ocorrência da prescrição, pois ficou evidente que houve inércia por parte da exeqüente, revelando, com isso, desinteresse em prosseguir na busca do seu direito, situação que afasta a ratio essendi da Súmula 106 do STJ.” (TJ/SP. Apelação nº 0064805-05.2008.8.26.0576, da Comarca de São José do Rio Preto, em que é apelante PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO sendo apelado MARRO PARTICIPAÇÕES E ADMINISTRAÇÃO S/C LTDA. Rel. Des. EUTÁLIO PORTO. 15ª. Câmara de Direito Público. J. 22.09.2011)
No mesmo sentido: Apelação nº 0002337-34.2010.8.26.0576, da Comarca de São José do Rio Preto. 18ª. Câmara de Direito Público. Rel. Des. JOSÉ LUIZ DE CARVALHO. J. 20.10.2011; Apelação nº 0044463-17.2001.8.26.0576, da Comarca de São José do Rio Preto. Rel. Des. CARLOS GIARUSSO SANTOS. 18ª. Câmara de Direito Público. J. 10.11.2011; Agravo de Instrumento nº 0118845-11.2011.8.26.0000, da Comarca de São José do Rio Preto. Rel. Des. CARLOS GIARUSSO. 18ª. Câmara de Direito Público. J. 15.12.2011; Agravo de Instrumento nº 0259281-20.2011.8.26.0000, da Comarca de São José do Rio Preto. 15ª. Câmara de Direito Público. Rel. Des. RODRIGUES DE AGUIAR. J. 9.02.2012;
O que configura a inércia não é a demora na execução do ato processual (que pode ser atribuída à máquina Judiciária), mas o abandono do processo por determinado lapso de tempo.
O abandono não só configura a prescrição como é causa de extinção do processo sem julgamento do mérito nos casos do art. 267, II e III, do CPC5.
O dever de condução da execução também aparece no art. 40 da Lei 6.830/19806 como requisito para suspensão do curso da execução, ou seja, o credor deverá promover a citação do Devedor (por edital, inclusive) ou a busca pelos seus bens e se não os localizar, poderá ter a suspensão da prescrição por um ano, mediante o arquivamento da execução.
Neste sentido, concluímos que o caso paradigma representado pelo RESP nº 1.120.295/SP (Rel. Min. LUIZ FUX. STJ. 1ª. Seção. DJU 21.05.2010) somente deveria ser aplicado: i) aos processos ajuizados antes da vigência da Lei Complementar nº 118/2005; e ainda assim ii) se o atraso na citação decorresse de inércia atribuível ao Poder Judiciário, por uma suspensão lógico-normativa do prazo prescricional previsto no art. 174, I, CTN (redação original) uma vez que a prescrição é matéria reservada à lei complementar (art. 146, III, “b”, CF/1988) e não pode ter “nova” causa de interrupção prevista em lei ordinária (CPC).
Notas
(1) Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.
Parágrafo único. A prescrição se interrompe:
I – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal; (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)
II – pelo protesto judicial;
III – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
IV – por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor.
(2) Lê-se do voto do Min. LUIZ FUX:
“Desta sorte, com o exercício do direito de ação pelo Fisco, ante o ajuizamento da execução fiscal, encerra-se a inação do credor, revelando-se incoerente a interpretação segundo a qual o fluxo do prazo prescricional continua a escoar-se, desde a constituição definitiva do crédito tributário, até a data em que se der o despacho ordenador da citação do devedor (ou até a data em que se der a citação válida do devedor, consoante a anterior redação do inciso I, do parágrafo único, do artigo 174, do CTN). Ademais, o Codex Processual, no § 1º, do artigo 219, estabelece que a interrupção da prescrição, pela citação, retroage à data da propositura da ação, o que, na seara tributária, após as alterações promovidas pela Lei Complementar 118⁄2005, conduz ao entendimento de que o marco interruptivo atinente à prolação do despacho que ordena a citação do executado retroage à data do ajuizamento do feito executivo, a qual deve ser empreendida no prazo prescricional.”
(3) “14. O Codex Processual, no § 1º, do artigo 219, estabelece que a interrupção da prescrição, pela citação, retroage à data da propositura da ação, o que, na seara tributária, após as alterações promovidas pela Lei Complementar 118⁄2005, conduz ao entendimento de que o marco interruptivo atinente à prolação do despacho que ordena a citação do executado retroage à data do ajuizamento do feito executivo, a qual deve ser empreendida no prazo prescricional.”
(4) Art. 8º – O executado será citado para, no prazo de 5 (cinco) dias, pagar a dívida com os juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, ou garantir a execução, observadas as seguintes normas:
I – a citação será feita pelo correio, com aviso de recepção, se a Fazenda Pública não a requerer por outra forma;
II – a citação pelo correio considera-se feita na data da entrega da carta no endereço do executado, ou, se a data for omitida, no aviso de recepção, 10 (dez) dias após a entrega da carta à agência postal;
III – se o aviso de recepção não retornar no prazo de 15 (quinze) dias da entrega da carta à agência postal, a citação será feita por Oficial de Justiça ou por edital;
IV – o edital de citação será afixado na sede do Juízo, publicado uma só vez no órgão oficial, gratuitamente, como expediente judiciário, com o prazo de 30 (trinta) dias, e conterá, apenas, a indicação da exeqüente, o nome do devedor e dos co-responsáveis, a quantia devida, a natureza da dívida, a data e o número da inscrição no Registro da Dívida Ativa, o prazo e o endereço da sede do Juízo.
§ 1º – O executado ausente do País será citado por edital, com prazo de 60 (sessenta) dias.
§ 2º – O despacho do Juiz, que ordenar a citação, interrompe a prescrição.
(5) “Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:
(…)
Il – quando ficar parado durante mais de 1 (um) ano por negligência das partes;
III – quando, por não promover os atos e diligências que Ihe competir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias;”
(6) “Art. 40 – O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.
§ 1º – Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao representante judicial da Fazenda Pública.
§ 2º – Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento dos autos.
§ 3º – Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens, serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução.
§ 4 – Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato. (Incluído pela Lei nº 11.051, de 2004)
§ 5o A manifestação prévia da Fazenda Pública prevista no § 4o deste artigo será dispensada no caso de cobranças judiciais cujo valor seja inferior ao mínimo fixado por ato do Ministro de Estado da Fazenda. (Incluído pela Lei nº 11.960, de 2009)
Fonte: Última Instância