Eurico Marcos Diniz de Santi*
Artigo elaborado no NEF – Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV.
…la teoria jurídica està poblada de metàfores aquàtiques
…la teoría jurídica está poblada de metáforas acuáticas
…a teoria jurídica está povoada de metáforas aquáticas
(Eugênio Bulygin)
1 – Introdução, entre metáforas e “buracos no direito”: Evasão, elusão, elisão e… “ilusão” (01)
Esse trabalho é produto datado do inverno europeu de 2006. Trata-se de pesquisa realizada, na Espanha que foi apresentada em seminário na Universidade Pompeu-Fabra, em Barcelona, em encontro especial entre os professores e pesquisadores dos departamentos de “filosofia do direito” e “financeiro e tributário”, que realizei na qualidade de pesquisador visitante a convite do M. Reitor José Juan Moreso Mateos e apoio da DireitoGV. O objetivo desse estudo foi propor uma reconstrução dos conceitos de “planejamento tributário” e “fraude à lei”, utilizando como pano de fundo, exclusivamente, a perspectiva da dogmática Espanhola sobre o direito tributário. Para testarmos empiricamente o modelo teórico traçado, utilizamos, apenas para fins explicativos, suporte factico concreto. O esforço desse artigo centra-se em demonstrar o potencial da teoria analítica aplicada na solução de problemas práticos: em razão disso, a bibliografia citada refere-se apenas a poucos autores espanhóis que situam o problema tributário em foco e outros tantos que nos fornecem o instrumental analítico indispensável à análise proposta.
pHá quase dez anos, Oscar Mendonça e Paulo Modesto convidaram-me para proferir palestra em Salvador, Bahia, no Congresso Brasileiro de Direito Público – na terra de todos os santos – justamente sobre o tema “fraude a lei e planejamento tributário”. Recordo que estudei detidamente o tema, mas pouco consegui avançar na sistematização do tema: havia algo de perturbador e inquietante que não facilitava a compreensão do assunto, os termos se multiplicavam: “negócio jurídico direito” e “indireto”, “fraude a lei”, “abuso de direito”, “norma de cobertura”, “fato substancial”, “verdade substancial”, “verdade aparente”, “evasão”, “elisão”, “elusão” e a incomoda dualidade “simulação”/”dissimulação” explicada como dado objetivo – na festejada e muito citada – metáfora de FERRARA (02):
“a simulação é um fantasma e a dissimulação uma máscara”!
Convenhamos, para fazer justiça à metáfora e, ainda, representar mais condignamente o “direito” e seus fenômenos sobrenaturais, necessário seria acrescentar algo mais à imagética figura do fantasma com máscara: talvez, caísse-lhe bem – também – uma balança, bem pesada, sendo arrastada por uma longa corrente…
O fato é que o direito está repleto de metáforas – afinal como lembra TORQUATO CASTRO – houve um tempo em que “interpretar”, ao pé da letra (outra metáfora), significava “adentrar a presa”:
“quem interpretava, o sarcedote, olhava para a disposição, coloração, consistência e textura dos órgãos e alimentos no interior do pássaro, mas via ali muito mais que isso. Via o que cria oculto, mas presente: via o futuro” (03).
Neste evento sobre o tema, ante a assombração, preferi a poesia – ao menos concreta – de CAETANO VELOSO (04):
“você diz a verdade, a verdade é seu dom de iludir”.
Parecia-me um bom caminho, ao menos mais objetivo, note-se: essa frase revela muito sobre a noção de “fraude a lei”: a relação entre a norma de cobertura do direito privado e norma tributária de direito público, em como o contribuinte ente manipular esse “dizer a verdade” e como essa verdade pode ter o “dom de iludir” o Fisco – metáfora óbvia em que a idéia de “contribuinte” ganha a astúcia feminina e o Fisco, ingenuidade masculina. Assim, usei meu tempo de fala na palestra, passeando – sem linhas telefônicas – entre MATRIX e ZION, entre o mundo do dever ser e o mundo do ser, entre o mundo das formas de iludir (o dever ser) e o mundo que parece se constituir na crença de sua própria ontologia (o mundo do ser), entre forma e conteúdo, entre céu e terra, entre paraíso e inferno, entre as sombras e o sol da caverna de Platão… para encerrar, enfim, novamente com Caetano:
“você diz a verdade, a verdade é seu dom de iludir”…
O público pareceu gostar das metáforas e fui – não sem razão – ironicamente elogiado entre amigos pela minha excelente palestra sobre “Matrix, Caetano e o Direito Tributário” e eles tinham toda razão (afinal, não era bem esse o tema): bem, melhor falar sobre o que se acha que entende do que daquilo que temos certeza absoluta que não entendemos.
Nada é por acaso, anos depois, lá estava na Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, talvez o coração europeu da “Matrix”, da poderosa Escola Analítica de Direito, para tratar exatamente do mesmo tema, mas agora de dentro da “Matrix”, quer dizer, do “Normative Systems”. E só para variar, falando de CAETANO.
2 – Entre o Estado e a sociedade, a universidade; entre a teoria e a prática, a investigação
Este trabalho, pois, foi escrito e desenvolvido em produtiva vivência acadêmica, durante cinco semanas, no inspirador inverno de Barcelona em janeiro e fevereiro de 2006, na Universidade Pompeu-Fabra, uma das principais sedes mundiais da Escola Analítica de Direito, em que tive o prazer de desfrutar entre cafés, almoços e seminários do convívio agradável e sempre repleto de humor desses queridos filósofos del derecho, entre outros Pablo Navarro, Daniel Mendonca, Jordi Ferrer Beltrán, Josep Maria Vilajosana, Josep Leuis Marti, Jorge Malem, Ernesto Gastón Valdez e Ricardo Caracciolo, agradeço de modo especial à Antonia Agulló Agüero, Catedrática e Decana de Financiero y tributario pela extraordinária recepção e orientação nos caminhos do Direito Espanhol, bem como às Professoras Ana Belém Macho Pérez e Isabel Bassas que me ajudaram neste trabalho de pesquisa, enfim, minha especial gratidão a JOSÉ JUAN MORESO, M. Reitor desta extraordinária Universidade – um Reitor analítico sim é magnífico – pelo gentil convite que propiciou essa inesquecível experiência nos sofisticados espaços da UPF. Esse trabalho também não seria possível sem o incondicional apoio da direção da DIREITOGV – Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – na pessoa do Prof. Ary Oswaldo Mattos Filho, e do IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – na figura sempre inspiradora da pessoa do Prof. Paulo de Barros Carvalho, meu iniciador nos estudos lógica jurídica e constante incentivador nos estudos de teoria do direito e direito tributário.
Dois grupos de estudo que se desenvolveram no ano de 2005, demarcam as intuições que inspiram esse trabalho: (i) o Grupo de Estudos na DIREITOGV em que estudamos o relato “Análise de critérios de decisión judicial” de Ricardo Guibourg, os “Ilícitos Atípicos” de Atienza e Manero e “Los derechos em juego” (Playing by de rules) de F. Shauer e (ii) o grupo de pesquisa do IBET em que estudamos “Las pieças del derecho” de Atienza e Manero, “Teoria dos Princípios” de Humberto Ávila, “Los limites del Derecho” de Pablo Navarro e “Los derechos en jogo” de Daniel Mendonca.
Informam também a reflexão desse trabalho, o produtivo seminário realizado em conjunto com a Receita Federal em colaboração com a DRJ-CAMPINAS em convênio com a DIREITOGV “Planejamento Tributário e Ética”, que contou com a participação dos professores Ronaldo Porto Macedo, Pablo Navarro, Roberta Prado, Viviane Muller, Ricardo Mariz de Oliveira, Marco Aurélio Greco, Rafael Vazella, Cássio Scarpinella Bueno, Paulo Conrado, Flávia Puschell, Daniel Peixoto, Gustavo Amaral, Vanessa Rahal, Marcos Mello e Maria Rita Ferragut, cujas reflexões inevitavelmente constituem, também, parte do patrimônio das intuições deste trabalho.
3 – Da teoria à prática, do direito à experiência: Redução de carga tributária mediante a utilização de pessoa jurídica no imposto de renda
Sem a pretensão de responder as difíceis questões que o tema sugere, esse ensaio cuida especialmente da figura da “fraude a lei” – central no debate sobre planejamento tributário – no esforço de equacioná-la e analisá-la sob às luzes, entre tantas outras, de três obras: “Ilícitos atípicos” de ATIENZA e MANERO, “Las regras em juego” de SHAUER e, é claro, “Normative Systems” de ALCHOURRÓN e BULYGIN. Também corroborou muito nessas reflexões a experiência de trabalhar com PABLO NAVARRO no processo de investigação e produção do seminário “Investigação e análise 2”, realizado com a colaboração da DRJ-CAMPINAS que coordenou junto à Receita Federal do levantamento e a seleção do inestimável material que utilizamos na orientação dos debates do aludido seminário.
Assim, na linha metodológica adotada pela DIREITOGV, seguindo os tradicionais métodos pedagógicos de tradicionais universidades americanas como YALE e HARVARD – mas sem negar a tradição analítica brasileira, inspirada na paisagem da praia de Boa Viajem e apurada nos tradicionais espaços da UFPE (05) por LOURIVAL VILANOVA (o jurista é o ponto de interseção entre a teoria e a prática, entre a ciência e a experiência) e dos não menos charmosos espaços da PUC/SP (06), onde foi cultivada, desenvolvida e aplicada exemplarmente à dogmática do direito tributário por BARROS CARVALHO -, buscamos neste trabalho o contato empírico com a realidade, mediante a análise de casos concretos que “irritam” a sistemática do direito tributário, colocando à mostra seus limites.
Utilizamos para testar a teoria o caso em que técnico de futebol “Y”, conforme informações amplamente divulgadas em todos nossos jornais, especialista em treinamento de equipes profissionais, constituiu pessoa jurídica, para prestar serviços (i) de treinamento de equipe de técnico de futebol e (ii) de supervisão das equipes amadoras, à sociedade esportiva “X”. Segundo cláusula contratual, a prestação dos serviços seria efetivada obrigatoriamente pela pessoa do sócio “Y”. Ao final de cada mês, “Y” apresentava notas fiscais de prestação de serviços e recebia as contraprestações devidas por “X”.
Segundo entendimento da Secretaria da Receita Federal, o contrato de prestação de serviços entre o Palmeiras e a aludida Empresa caracterizava fraude a lei (07), já que os serviços eram prestados de forma individual e personalíssima. A conseqüência tributária, dessa desconsideração da relação jurídica entre as duas sociedades, foi o lançamento de crédito tributário com juros e multa, que decorreram da ausência da tributação dos valores recebidos em determinado período pelo sócio da empresa. Em outras palavras, a Receita Federal entendeu que os valores recebidos mensalmente não pertenciam à empresa prestadora de serviço, mas à pessoa física de seu sócio “X”.
A autuação de “X”, em resumo, se deu porque prestava serviços como pessoa jurídica e essa pessoa jurídica tributava os valores recebidos de forma menos gravosa (15% sobre 32% do valor efetivo recebido) que aquela decorrente de rendimentos auferidos diretamente pelas pessoas físicas (27,5% sobre todo o recebido).
4 – Entre a “economia de opção” e a fraude a lei, nos limites do direito: “o leão indomável” versus “o lombrosiano sonegador contumaz”
O planejamento tributário instala-se nos limites do direito: nas difíceis, intrincadas e quase sempre inexploradas áreas de penumbra na teoria do direito, entre o direito e o não-direito, entre a moral-social e a letra da lei – retratando os limites da forma no direito -, entre a legalidade e a insegurança, entre a validade e a não-validade dos atos e negócios jurídicos, entre os interesses privado e público, entre a incidência e a não-incidência, entre o lícito e o ilícito. Em razão de tudo isso, não por acaso, toda terminologia empregada nessa seara é vaga e imprecisa, não há consenso sobre o sentido e alcance de termos e expressões como “simulação”, “dissimulação”, “negócio jurídico indireto”, “fraude a lei”, encobrindo as distinções entre a “evasão” e a “elisão”, entre a “elusão” e a efetiva “economia de opção”.
Não obstante, o problema persiste e desafia a doutrina, o Estado e a sociedade: algo de perturbador assombra a idéia de planejamento tributário. Incomoda, de um lado, a perspectiva da igualdade (contribuintes que desenvolvem o mesmo negócio jurídico, com roupagens jurídicas distintas, assumindo cargas tributárias diversas); de outro, na perspectiva do mercado, afeta os mecanismos da livre-concorrência.
Também desafia nossa intuição moral que se vê afrontada pelos problemas éticos que a manipulação das formas jurídicas encerra, entremeada por valores de filosofia política e social como a solidariedade e outros valores igualmente relevantes como a segurança jurídica e a certeza do direito. Tampouco a sempre sonhada reforma tributária – solução de todos nossos problemas – parece prometer dias mais claros – diante da complexidade da doutrina: não se sabe ao certo o que reformar para eliminar esse problema, se é que é um problema, se é que é passível de solução? Como? E para quê?
4.1 – Plano das formulações normativas
As discussões doutrinárias em torno do tema da fraude a lei na Espanha convergem para a Lei Geral Tributária e apresentam-se, sucessivamente, sob dois suportes legislativos: a Lei 230/63, vigente até 2004, e sua sucessora a Lei 58/2003.
Lei Geral Tributária anterior:
Ley 230/1963, de 28 de Diciembre, General Tributaria. (Vigente hasta el 1 de julio de 2004)
Artículo 23.
1. Las normas tributarias se interpretarán con arreglo a los criterios admitidos en Derecho.
2. En tanto no se definan por el ordenamiento tributario, los términos empleados en sus normas se entenderán conforme a su sentido jurídico, técnico o usual, según proceda.
3. No se admitirá la analogía para extender más allá de sus términos estrictos el ámbito del hecho imponible o el de las exenciones o bonificaciones.
Artículo 24.
1. Para evitar el fraude de Ley se entenderá, a los efectos del número anterior, que no existe extensión del hecho imponible cuando se graven hechos realizados con el propósito probado de eludir el impuesto, siempre que produzcan un resultado equivalente al derivado del hecho imponible. Para declarar que existe fraude de Ley será necesario un expediente especial en el que se aporte por la Administración la prueba correspondiente y se dé audiencia al interesado.
2. Los hechos, actos o negocios jurídicos ejecutados en fraude de ley tributaria no impedirán la aplicación de la norma tributaria eludida ni darán lugar al nacimiento de las ventajas fiscales que se pretendía obtener mediante ellos.
3. En las liquidaciones que se realicen como resultado del expediente especial de fraude de ley se aplicará la norma tributaria eludida y se liquidarán los intereses de demora que correspondan, sin que a estos solos efectos proceda la imposición de sanciones.
Artículo 25.
En los actos o negocios en los que se produzca la existencia de simulación, el hecho imponible gravado será el efectivamente realizado por las partes, con independencia de las formas o denominaciones jurídicas utilizadas por los interesados.
(.)
Lei Geral Tributária Atual
Ley 58/2003, de 17 de diciembre, General Tributaria.
Artículo 15. Conflicto en la aplicación de la norma tributaria.
1. Se entenderá que existe conflicto en la aplicación de la norma tributaria cuando se evite total o parcialmente la realización del hecho imponible o se minore
la base o la deuda tributaria mediante actos o negocios en los que concurran las siguientes circunstancias:
a) Que, individualmente considerados o en su conjunto, sean notoriamente artificiosos o impropios para la consecución del resultado obtenido.
b) Que de su utilización no resulten efectos jurídicos o económicos relevantes, distintos del ahorro fiscal y de los efectos que se hubieran obtenido con los actos o negocios usuales o propios.
2. Para que la Administración tributaria pueda declarar el conflicto en la aplicación de la norma tributaria será necesario el previo informe favorable de la Comisión consultiva a que se refiere el artículo 159 de esta ley.
3. En las liquidaciones que se realicen como resultado de lo dispuesto en este artículo se exigirá el tributo aplicando la norma que hubiera correspondido a los actos o negocios usuales o propios o eliminando las ventajas fiscales obtenidas, y se liquidarán intereses de demora, sin que proceda la imposición de sanciones.
Artículo 16. Simulación.
1. En los actos o negocios en los que exista simulación, el hecho imponible gravado será el efectivamente realizado por las partes.
2. La existencia de simulación será declarada por la Administración tributaria en el correspondiente acto de liquidación, sin que dicha calificación produzca otros efectos que los exclusivamente tributarios.
3. En la regularización que proceda como consecuencia de la existencia de simulación se exigirán los intereses de demora y, en su caso, la sanción pertinente.
4.2 – Demarcação conceptual da dogmática espanhola sobre “fraude a lei”
Os problemas que serão aqui discutidos relativos a “fraude a lei”, inicialmente desenhada no Art. 24 da LGT anterior e, atualmente, no Art. 15 da LGT vigente sob o rótulo de “conflito de aplicação da lei tributária” foram muito bem sintetizados por CARLOS PALAO TABOADA (08), mediante as seguintes indagações:
“Devem existir limites, desde a perspectiva do direito tributário, à configuração de operações jurídicas, é dizer, à autonomia da vontade? Em caso afirmativo, como traçar ditos limites?”
O problema aqui está em definir a linha divisória entre a aqui denominada “economia de opção” (no Brasil, planejamento tributário ou elisão) (09) e a fraude a lei, entre a manipulação lícita de negócios jurídicos para pagar menos tributos e a manipulação ilícita destes atos voltada à redução da carga tributária.
Para demarcar o conceito de “fraude a lei”, optamos por restringir nossa análise dogmática às definições trabalhadas por quatro renomados professores que se dedicaram, detidamente, ao tema: PALAO TABOADA, FALCON Y TELLA, FERREIRO LAPATZA e GARCÍA NOVOA .
A fraude a lei tributária – ensina PALAO TABOADA – “se caracteriza esencialmente porque, desde el punto de vista de la aplicación de la ley fiscal, el negocio u operación realizado es artificioso, es decir, no se corresponde con la realidad económica y ha sido utilizado con la única finalidad de eludir la norma tributaria. En esto consiste el ‘propósito de eludir el tributo’ (art. 24.1 LGT). El sujeto pretende que ese negocio se acepte a efectos fiscales, para lo qual intenta que se califique atendiendo principalmente a los aspectos formales del tipo negocial”.
Para FALCON Y TELLA no direito tributário os atos ou negócios jurídicos são simples fatos que acontecem ou não, se não ocorre “existe pura e simplesmente uma economia de opção, que nunca infringe o ordenamento tributário”, enquanto que “a fraude à lei civil consiste na realização de uma conduta proibida ou contrária ao ordenamento jurídico” (1995: 63) (10). Em razão disso, adverte o autor que não se pode confundir “fraude a lei” com “economia de opção”.
No mesmo sentido, FERREIRO LAPATZA sustenta que:
“O la causa, típica, general, abstracta y suficiente de un negocio existe y por tanto solo se puede hablar en su caso, puesto que el negocio existe y configura el ‘hecho’ tipificado como hecho imponible por la ley, de ‘economía de opción’; o la causa no existe y tampoco existe el negocio con lo que sólo se podrá hablar de simulación: tertium nom datur” (11). Se o negócio não realiza o fato imponível é economia de opção e, portanto, não pode ser tributado, salvo se for caso de simulação. Ou seja – conforme afirma GARCÍA NOVOA – FERREIRO LAPTAZA nega esse “tertium genus – a fraude a lei – “entre la economia de opción y la simulación”.
GARCÍA NOVOA em atilado estudo sobre “La cláusula antielusiva” assinala que “el elemento clave, tanto en el abuso de formas con en el fraude, es, por un lado, la existencia de causes formales predeterminados por el ordenamiento para la realización de los propósitos económicos de los particulares, y por otro la liberdad de pactos que permite apartarse de estos cauces, siempre que, desde el punto de vista privado, se garantice la concurrencia de los requisitos de causa. El instituto del fraude, con el del abuso de las formas jurídicas, viene a suponer que, partiendo de la premisa de que las partes tienen siempre a su disposición una vía normal, ‘la Administración no sólo puede sino que debe apartarse de la forma jurídica (tipo de contrato o negocio) elegida por el contribuyente si ésta ha sido utilizada con el propósito de eludir el pago del tributo, es decir, en fraude a la ley tributaria’ (PALAO TABOADA, “El tolledero del fraude a la ley tributaria, Comentarios a la STSJ de La Rioja de 9 de febrero de 2000″, p. 144)” (12).
Assim, tomando apenas esses elementos do discurso desses quatro notáveis juristas, podemos verificar a presença de três elementos fundamentais que se caracterizam pelas seguintes propriedades (ou critérios) utilizadas nas definições de “fraude a lei” destes quatro juristas:
FHO) o conceito de “fato imponível ocorrido” como a configuração do fato descrito na lei tributária sobre o suporte negocial. Tal definição não se estende ao fato real ou econômico, tão-apenas ao superficial;
FRD) o conceito de “fraude” em sentido amplo que atende genericamente às definições dadas num sentido mas próximo de ato ilícito típico;
Bem, deste modo, entrecruzando esses conceitos podemos sacar a seguinte tabela, relacionando o uso dessas idéias com o modelo conceptual adotado pelos autores supracitados, no conceito de “fraude a lei”:
ESQUEMA-I:
Assim, podemos perceber – sem nos preocupar com as omissões da tabela – os seguintes aspectos
(i) Primeiro, verificamos que a divergência no debate entre está no plano conceptual, posto que falam linguagens distintas: enquanto para FALCON a “fraude” está nos casos 7 e 8, para FERREIRO não está em nenhum dos casos relevantes para os demais e para TABOADA/NOVOA encontra-se no caso 2;
(ii) O conceito de “fraude”, sem dúvida central nestas divergências, é profusamente ambíguo, pode ser: o ato inescrupuloso relativo ao não-pagamento do tributo; a manipulação da forma do negócio para não configurar o fato gerador; pode-se, ainda, pensar a fraude em relação à lei civil que disciplina o negócio ou em relação à lei tributária e, também, na simulação vislumbra-se a idéia de fraude; cada autor escolhe a “fraude” que prefere e constitui, a partir daí, seu modelo teórico;
(iii) FALCON, FERREIRO e TABOADA/NOVOA empregam “fraude” em sentidos diversos: para FALCON a fraude só pode ocorrer depois do fato imponível, no sentido empregado por FERREIRO a “fraude” que interessa é a que configura a “simulação”, enquanto que para TABOADA/NOVOA a “fraude” relevante é aquela que impede a configuração digamos prima facie do fato imponível;
(iv) No modelo adotado por FERREIRO a “fraude” relevante para o ordenamento tributário é a “simulação”, por isso a coluna de Ferreiro encontra-se vazia;
(v) Nota-se, também, uma discussão de fundo importante sobre o uso positivo da expressão “fato imponível” que nesse uso apresenta a ambigüidade: no sentido prima facie (da aparência do negócio de cobertura) e no sentido substancial ou “verdadeiro”, ligado à idéia de substrato econômico;
(vi) Verificamos também um aparente problema em FALCON e FERREIRO que parecem exigir na formação do “fato imponível” o negócio jurídico, afastando com isso a idéia de “fraude a lei”, mas parecem aceitar a possibilidade de encontrar na simulação a “verdadeira realidade” no substrato econômico, utilizando aqui “fato imponível” em outra acepção; (explicar melhor)
5 – Panorama da investigação: Fraude a lei… mas a qual “lei”?
O tema da fraude a lei parece encerrar uma séria de armadilhas que tendem a nos cercar e imobilizar. Uma delas, protegida pela ambigüidade do termo “lei”, é a identificação da “peça” normativa objeto da fraude: é a regra que regula o negócio, o princípio aviltado, a norma tributária iludida ou o direito como um todo?
Outra agravante é que tanto o conceito de “fraude a lei”, como as idéias sobre “regra”, “princípio” e “direito” são indissociáveis do conceito de interpretação no direito. E ao tentar a interpretação da “interpretação” percebemos que o termo – como adverte DANIEL MENDONCA – “exige cuidado especial em seu emprego porque padece da conhecida ambigüidade processo/produto: com ele se alude tanto a uma atividade, a atividade interpretativa, como ao resultado dessa atividade. Assim, expressões como “interpretação jurídica”, “interpretação do direito”, “interpretação da lei” ou similares, aludem tanto à atividade consistente em determinar o significado ou sentido de um fragmento da linguagem jurídica (palavra, expressão ou oração), como ao resultado ou produto dessa atividade” (2000: 151).
Além disso, por detrás de regras, princípios e da idéia geral de direito há valores. Valor do legislador, valor no enunciado da norma (“norma” utilizada aqui para expressar a idéia de gênero próximo designando regras e princípios) (13), valor no ato jurídico, mas também político e social, de aplicação do direito.
E, aproximando-nos mais do problema da fraude a lei, vislumbramos também a “regra do direito civil” que informa e orienta a constituição do negócio jurídico, tutelada pelos valores que a justificam e informam, mais ligados à orientação do direito privado, mas ao mesmo tempo, em contra-cena, a regra da tributação (regra matriz de incidência (14)), também tutelada pelos valores que a justificam e informam (por exemplo, a capacidade contributiva, a legalidade, a segurança jurídica etc).
Não bastasse tudo isso, a consciência analítica nos adverte que estamos apenas no plano abstrato e genérico das normas jurídicas que demandam ainda concreção. Teríamos assim, de um lado, os agentes do negócio jurídico entre eles o eventual contribuinte, seus inerentes valores e intenções (autonomia da vontade, livre iniciativa etc), a prova ou manifestação jurídica desses valores e intenções, e a própria formulação do negócio jurídico (ainda, sujeito à interpretação) e; de outro, o agente público (ou agentes) responsáveis pela lavratura do auto-de-infração e aplicação da lei tributária, seus inerentes valores e intenções, e a própria formulação do lançamento tributário (também sujeito a interpretação).
6 – A oposição fato/evento: “distinguiendo”
Ora, se o direito é o conjunto das normas construídas a partir desses documentos jurídicos, não se pode entender que o mero acontecimento factico e a obrigação tributária pertençam ao direito sem o necessário revestimento lingüístico; foi a partir destas reflexões que BARROS CARVALHO molda o modelo teórico esculpido no “direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência” (15), concluindo que fato jurídico e a obrigação tributária não serão jurídicos enquanto não ingressarem pelas portas da linguagem do direito, que são atos de enunciação.
Assim – dentro dessa perspectiva – além de saber sobre a conduta prescrita, o direito exige saber sobre a conduta produtora da mensagem prescritiva. Ocorre que os processos de positivação do direito pertencem à ordem do acontecimento, sucedem-se no tempo-histórico e no espaço-social, e a priori consomem-se no tempo e espaço de sua realização. A forma de conciliar a segurança, a certeza e a objetividade, que o direito almeja, com a inefabilidade dos fatos de produção é a objetivação na linguagem jurídica desses processos de positivação. Não basta a ordem escrita, precisa-se saber, também, como e por quem foi escrita (16).
Ao deslocar o estudo das fontes (17), do universo dos textos normativos para o ato de enunciação criador dos documentos jurídicos, a distinção entre evento e fato imprimiu nova e significativa perspectiva à teoria do lançamento (liquidación) (18): o ato de aplicação para entrar no direito há que se revestir da linguagem competente exigida pelo próprio direito. Quer dizer, para ultrapassar o portal que separa o mundo do ser e o mundo do dever-ser, é preciso transubstanciar o ato de aplicação na linguagem do direito. O ato de aplicação é o evento, que é traduzido por uma articulação lingüística, o fato: o evento retido do passado é o significado; o fato representado, o significante (19).
É preciso, pois, estarmos atentos às astúcias da enunciação (20) para identificarmos no direito os dêiticos de tempo, espaço e pessoa que sobrerrestam aos atos de fala (21) – sejam eles atos negociais, legislativos, administrativos ou judiciais – sem essa linguagem: o mero acontecimento perde-se do sistema jurídico como passado que não é mais.
7 – Esquema de análise da aplicação tributária
Sem pretender adentrar a explicações epistemológicas que justifiquem o modelo adotado ou a definição do que entendemos por “direito”, “regra”, “princípio”, “interpretação”, “valor”, “enunciado”, “regra do direito civil”, “negócio jurídico”, “direito privado”, “direito público”, “regra-matriz de incidência”, “plano abstrato e genérico”, “concreção”; “auto de infração”, “agentes do negócio”, “contribuinte”, “prova”, “intenção”, “formulação”, “lançamento tributário” etc, que seriam – obviamente fundamentais – mas foram suprimidas em razão do objeto deste trabalho.
São problemas que pontuam essa investigação: (i) a ambigüidade da expressão “fraude a lei”; (ii) a relação da regra geral e abstrata do negócio jurídico com suas justificativas [princípios]; (iii) a relação da regra de tributação [regra matriz de incidência] com suas justificativas [princípios]; (v) os problemas da interpretação, identificação e sistematização do direito (22) relativos a estas regras e princípios e (vi) a oposição entre as respectivas regras e seus princípios ou valores subjacentes.
Partiremos – em nossa análise – do seguinte do seguinte esquema representativo.
Em que:
Na = “norma de ação”, exemplo: Se a conduta de auferir renda, então deve ser a obrigação de pagar imposto de renda (Op);
Ev = “evento” enquanto acontecimento factico subsúmivel à hipótese da norma “Na”, exemplo: “X” auferiu renda;
Ej = “efeito jurídico” decorrente da qualificação do evento pela norma, exemplo: “X” fica obrigado a pagar 100 euros a título de imposto de renda;
Nc = “norma de competência” (23): dada realização de determinado comportamento pela pessoa definida como competente (exercício da competência), então deve ser a constituição de formulação normativa pertencente ao sistema (negócio jurídico, ato administrativo, lei ou sentença judicial), exemplo: o agente fiscal, verificando o evento de auferir renda de “X”, realiza o devido procedimento, realizado as provas e a forma exigida e produz o documento normativo de lançamento tributário (liquidación), tornando liquida e certa a obrigação de “X” pagar 100 euros a título de tributo;
Fp = “fato jurídico procedimental”, juridicizado por aplicação conceptual e institucional, ao mesmo tempo (v. o próximo Item), corresponde à realização do procedimento exigido na norma de competência ultimado no ato de enunciação da formulação normativa, exemplo: o agente fiscal competente realizando o procedimento de lavratura do auto de infração em face de “X”;
Fn = “formulação jurídica”, o documento normativo produzido pela autoridade, exemplo: o auto de infração, devidamente notificado, recebido por “X”, tornando liquida e certa a obrigação jurídica de “X” pagar 100 euros para o Fisco.
8 – Aplicação conceptual e aplicação institucional
Utilizaremos as expressões aplicabilidade conceptual e aplicabilidade institucional tal qual empregadas por NAVARRO para distinguir os efeitos da norma de ação “Na” e da norma de competência “Nc” (24), chamaremos de aplicabilidade conceptual (ou interna) a subsunção da norma “Na” sobre o evento, produzindo o efeito jurídico “Ej”. Chamaremos de aplicabilidade instituciona (ou externa) a subsunção da norma “Nc” ao fato jurídico do exercício do procedimento normativo previsto nesta regra, constituindo a formulação normativa “Fn” que pode representar a formalização jurídica, por exemplo, da anterior aplicabilidade conceptual.
NAVARRO emprega essa distinção com astúcia – na defesa que faz da tese de ALCHOURRÓN e BULYGIN em face do ataque de ATRIA a uma das teses fundamentais do Normative Sytems, demonstrando que a tese crítica se equivoca em razão de confundir as acepções “a” e “b”, abaixo mencionadas – para aclarar a ambigüidade da frase “a solução de um caso genérico também soluciona um caso individual” que pode significar (em “a” temos aplicação conceptual e em “b” aplicação institucional) :
a) “a solução a um caso genérico também soluciona um caso individual”;
b) “a solução a um caso genérico também soluciona um caso judicial”.
Anota que essa ambigüidade é, com freqüência, passada por alto porque tanto os casos individuais (eventos ainda sem revestimento lingüístico vide ESQUEMA-II) assim como os casos judiciais – eventos articulados lingüisticamente nas decisões judiciais (fatos jurídicos na terminologia de BARROS CARVALHO) – são classificados, ambos, mediante as propriedades outorgadas pelo legislador em suas normas gerais (25).
Observa NAVARRO que enquanto a relação entre a solução de um caso genérico aplicado a um caso individual é interna ou conceptual (acepção “a”). A relação entre a solução de um caso genérico e um caso judicial é externa ou institucional (acepção “b”) (26). Ainda que não expressamente, a distinção entre casos individuais e judiciais se encontra implícita na análise que ALCHOURRÓN e BULYGIN fazem das relações entre sistema do súdito e sistema do juiz (27) e que são contíguas às noções de aplicação interna (ou conceptual) e aplicação externa (ou institucional).
Tais conceitos são também perfeitamente aplicáveis na relação entre a chamada incidência automática e infalível, ou pura e simples (como em PONTES DE MIRANDA, por exemplo) e a incidência jurídica (adotada por BARROS CARVALHO), identificáveis no discurso do direito tributário: a primeira, como aplicação conceptual; a segunda, como aplicação institucional.
Como podemos verificar no ESQUEMA-III, a idéia de fato imponível (hecho imponible) e obrigação tributária supõe a aplicação conceptual enquanto que a idéia de lançamento (liquidación) representaria a aplicação institucional. É de se notar que a distinção aludida por NAVARRO fica ainda mais clara neste esquema, aplicado ao direito tributário: o caso individual é o evento, decorrente da aplicação conceptual da norma tributária; caso tributário (administrativo ou judicial) seria o antecedente da norma individual e concreta do ato administrativo de lançamento tributário, ou em léxico do direito administrativo: a motivação do ato administrativo (28), “(Fjt)” no Esquema-III, que implica e fundamenta o conteúdo desse ato administrativo de liquidación, justamente a obrigação tributária formalizada (Op) de pagar o crédito tributário.
9 – O jogo dos sistemas: Sistema do contribuinte versus sistema do Fisco, “tributarista do contribuinte” versus “tributarista do Fisco”
Nossa tese é que essa distinção entre aplicação conceptual e institucional é chave para compreendermos a idéia de “fraude a lei” e suas peculiaridades no direito tributário, bem como as assimetrias e incoerências – abundantes na prática tributária – que se explicam a partir do reconhecimento efetivo de que há um choque entre dois sistemas normativos, ambos construídos a partir dos mesmos textos normativos, mas distintos: o sistema do contribuinte e o sistema do Fisco.
A “fraude a lei” instaura-se entre as disputas teóricas desses dois sistemas, na prática informados por interesses e concepções absolutamente diversas: não fossem os mesmos textos, as mesmas leis, a mesma Constituição, diríamos que o sistema do contribuinte e o sistema do Fisco conformam sistemas de direito totalmente diversos.
E isso é plenamente verdadeiro no plano descritivo (das proposições normativas): um é o sistema descritivo concebido pela prática da advocacia tributária e seus tributaristas (os tributaristas do contribuinte); outro é o sistema descritivo que informa a ação e a prática dos agentes fiscais e seus respectivos tributaristas (os tributaristas do Fisco). Reservamos a elegante expressão jurista – cunhada assim por GERALDO ATALIBA – para coroar (muitas vezes com espinhos) àqueles que – ao menos se esforçam – para encontrar equilíbrio, com “um pé em cada canoa”, entre um sistema e outro. Sempre com dificuldades de encontrar respostas “justas”, às vezes desagradando os interesses do contribuinte, outras desagradando os do Fisco e, não poucas vezes, com a inaudita habilidade de desagradar a ambos: deste abnegado “dever ser” independente, – sei que diria meu amigo GABRIEL IVO, jurista não por princípio, mas por regra – solitário, sim, e às vezes até perseguido, mas “engrossar o coro dos contentes, isso não, nunca!”.
10 – Todos os “sistemas” jurídicos em jogo, do direito à dogmática: O “poder” argumentativo do “Normative Systems”
Na montagem desse trabalho, analisando o Direito Espanhol aplicável percebi que não havia lacuna axiológica: havia previsão do critério relevante “utilizar artificialmente” as estruturas que orientam os negócios, expressamente, na Lei Geral Tributária Espanhola (LGT).
Os juristas parecem coincidir que a “tarefa mais importante de sua disciplina é desenvolver a tarefa que vagamente denominam ‘sistematizar’ e que consiste, no substancial, em determinar as soluções jurídicas para uma matéria dada, de extensão variável, mas sempre limitada” (GUIBOURG e MENDONCA) (29).
É na sistematização – que para Barros Carvalho corresponde a algo muito próximo da sua idéia do plano normativo S4 – que detectamos problemas como a fraude a lei:
“casos de incoerência, lacuna ou redundância, que habitualmente são considerados defeitos do sistema. A partir daí, os juristas formulam propostas para sua correção mediante mecanismos específicos, nem sempre regidos por regras claras e uniformes, ainda que baseados em exigências racionais (coerência, completude e independência)” (30).
O modelo mais adequado para sistematizar o material jurídico e identificar suas inconsistências é o “Normative Systems” de CARLOS ALCHOURRÓN e EUGÊNIO BULYGIN, conforme anuncia MORESO, a
“literatura filosófica-jurídica acerca das lacunas é amplíssima, mas grande parte dela carece de precisão conceptual. Sói falar-se em dita literatura de ‘supostos não regulados pelo direito’, incluindo em dito epígrafe situações muito diversas entre si, que convém distinguir adequadamente. O ‘Normative Systems’ constitui, neste sentido, um passo de gigante, subministra uma análise, em minha opinião não superada, das diversas noções de lacunas” (31).
Definição do Universo de circunstâncias ou propriedades (UP) relevantes identificadas no sistema normativo:
P1 – (FEI) Ocorrência de fato econômico imponível passível de qualificação como fato jurídico tributário [passível de aplicabilidade conceptual pela norma tributária, ex vi do Art. 15.1 da LGT (fato imponível “evitado”);
P2 – (NAT) Fato da utilização de negócios “artificiosos” que não apresentam efeitos jurídicos ou econômicos relevantes (senão redução da carga tributária, em relação ao efeito de P1) Art. 15.1ab
P3 – (RCT) Situação factico jurídica, perante P2, de redução da carga tributária (arroyo fiscal) em relação a P1, ex vi do Art. 15.1 da LGT 58/2003
Definição do Universo de Soluções (US) prescrito no sistema normativo.
Solução: solicitação de informe prévio da Comissão consultiva e lançamento (liquidación) do tributo sobre o fato imponível efetivo (P1), mais valores decorrentes da mora e sem imposição de sanção (desconstitui a aplicação institucional da norma negocial (NP2) de P2, constitui a aplicação conceptual da norma negocial (NP1) configurando P1 e, mediante ato de lançamento (liquidación), realiza a aplicação externa da norma tributária (NT) sobre o fato imponível P1. Em suma, S1 representa a aplicação externa da norma tributária sobre o fato imponível evitado P1.
Como a solução pode ser o dever de aplicar a norma tributária a P1 ou sua negação (-P1), significa dizer manter P2 e não aplicar a norma tributária, então, convém identificar duas soluções:
S1 – (ANT) Aplicação institucional da norma tributária sobre o fato imponível evitado, mediante ato de lançamento do agente fiscal, e desconsideração do fato tributário anterior;
S2 – (MSN) Manutenção do status normativo configurado pela pessoa jurídica.
ESQUEMA-IV:
Assim, podemos perceber – sem nos preocupar com as omissões da tabela – os seguintes aspectos:
Neste clássico, publicado há mais de 30 anos e traduzido como “Introdución al metodologia de las ciencias juridicas y sociales”, seus autores depois de propor no Capítulo I “Um modelo para os sistemas normativos”, baseado empiricamente no Código Civil Argentino, influenciado pelo Projeto Brasileiro de Freitas, iniciam o Capítulo II “El concepto de caso”, advertindo sobre os problemas do termo “caso” em seu uso no direito, conforme esclarece BULYGIN (32), em recente obra:
O termo ‘caso’ é ambíguo tanto na linguagem corrente, como na linguagem jurídica: assim falamos do caso de atentado político e do caso do ataque às Torres Gêmeas. A palavra ‘caso’ alude aqui sem embargo, a duas coisas bem distintas. O caso de atentado político está caracterizado por um conjunto de propriedades (um ato de violência tendente a causar danos a pessoas e coisas, produzido por razões políticas). O atentado político pode produzir-se – e, lamentavelmente, se produz com bastante freqüência – em distintos lugares e em diferentes momentos (…). Para dissolver essa ambigüidade usarei os termos ‘caso genérico’ e ‘caso individual’. Um caso individual é um evento concreto localizado no tempo e no espaço, cujos protagonistas são indivíduos; um caso genérico é uma propriedade ou conjunto de propriedades que podem exemplificar-se em um conjunto indefinido de casos individuais.
Segue-se que tal distinção, entre casos genéricos e casos individuais, permite diferençar: problemas puramente conceptuais, que se colocam no nível das normas gerais e dos casos genéricos (normas gerais e abstratas (33)); de problemas empírico-semânticos (aplicação destas normas gerais a casos individuais).
10.1 – Quatro tipos de lacunas
Há quatro problemas de lacunas nesses dois níveis: somente a primeira no plano geral e abstrato das normas, as demais no plano da subsunção a casos individuais.
Lacuna normativa, no nível das normas gerais e dos casos genéricos, que como assinala JOSÉ JUAN MORESO é relacional: “é relativa a um determinado universo de casos, que se gera a partir das propriedades relevantes de um determinado universo do discurso, e a um determinado universo de soluções normativas maximais” (34), ou seja, ocorre no plano normativo, mais precisamente entre as normas gerais e abstratas, representando a ausência de conseqüente normativo para determinada hipótese normativa prevista e posta como relevante no discurso normativo.
Diversamente dessas “lacunas normativas” que se dão exclusivamente no plano das normas gerais e abstratas, teríamos diante da aplicação no nível dos casos concretos, as chamadas: “lacunas de conhecimento”, “lacunas de reconhecimento” e “lacunas axiológias”.
Lacunas de reconhecimento surgem diante de casos individuais de aplicação do direito em que há dificuldade em saber se esta se aplica ou não ao caso individual (fato concreto) em razão de falta de determinação semântica dos conceitos da norma geral (35). Decorrem dos chamados problemas de penumbra (36). Ou seja, decorrem de problemas na interpretação de termos indeterminados utilizados pela lei aplicados a fatos concretos que se situam na zona de penumbra, exemplo: saber se lista telefônica é livro para efeito de gozar da imunidade.
Lacunas de conhecimento surgem diante de casos individuais de aplicação em que há dificuldade em se realizar a subsunção da norma geral ao caso individual em razão de falta de conhecimento do fato concreto (de suas propriedades) (37) . Ou seja, decorrem da falta de informação sobre os fatos do caso concreto, exemplo: falta de prova sobre o fato ou a operação jurídica.
Lacunas axiológicas, enfim, surgem quando não há lacuna normativa, i.é existe uma solução normativa geral e abstrata perfeitamente subsumivel ao caso concreto, entrementes, esta solução é axiologicamente inadequada. Este tipo de lacuna supõe a existência de uma propriedade relevante (critério axiológico denominado hipótese de relevância (38)) no caso individual, mas que foi ignorada (é irrelevante) pelo sistema jurídico posto que consideramos que:
“o legislador não levou em conta a inserção desta propriedade em questão, por não havê-la previsto, e que se a houvesse considerado, haveria dado uma solução diferente; em vez de solucionar o caso de forma genérica, haveria dado uma solução específica (situação que pode, de fato, ser verdadeira em muitos casos)” (39).
A Fraude a lei parecia-nos – assim com também a ATIENZA e MANERO (40), caso de lacuna axiológica: não obstante a forma do negócio esteja perfeita, não configurando a ocorrência do fato gerador, a situação da fraude a lei apresenta uma hipótese de relevância, um dado axiológico que foi ignorado pelo sistema jurídico (não foi satisfeita a estrita descrição legal desse fato imponível), o qual podemos considerar que o legislador não levou conta por não havê-lo previsto, e que se a houvesse considerado, haveria dado uma solução diferente; em vez de solucionar o caso de forma genérica, haveria dado uma solução específica.
11 – Entrando em campo com metáforas no campo do Barça
Cortes conceptuais sucessivos habilitam metáforas com pernas próprias: uma alegoria com o futebol. Em campo, de um lado, o Sistema do Contribuinte; de outro o Sistema do Fisco. Um juiz, um campo, uma bola, duas traves, dois times e três sistemas normativos regulando a mesma partida: o Sistema do Juiz, o Sistema do Contribuinte e o Sistema do Fisco.
Os habitantes do Sistema do Contribuinte conhecendo as limitações dos habitantes do Sistema do Fisco, realizam negócios obtendo muitas vezes o mesmo efeito que justificasse uma certa aplicação conceptual das normas tributárias, mas sabem que o direito tributário exige suporte de aplicações institucionais para incidir: como contratos e negócios jurídicos. Assim, como num ato de auto-preservação, muito comum nos sistemas ligados a seres vivos, como demonstram MATURANA e VARELLA (41) – o Sistema, ele mesmo cuida de criar legítimas estratégias de sobrevivência, tutelando e protegendo seus interesses: no caso, por exemplo, a plena liberdade negocial, a autonomia da vontade, a segurança e a certeza e, ainda, a tipicidade como forma de proteção em face de eventuais investidas de Sistemas outros que – tal qual predadores naturais – tão só pretendem “sugar” alimento e levar para um lugar longínquo e nunca muito bem identificado, de modo a comprometer as riquezas produzidas no Sistema Contribuinte; decorrentes, justamente, do regime de liberdades e garantias que esse Sistema oferece. E aprendamos com a natureza: todo Sistema externo é sempre, potencialmente, predador: se o Sistema do Contribuinte não se defender adequadamente, pode ser completamente desmantelado pelo Sistema predador do Fisco. E para exemplos sobre isso, já não precisamos mais da Biologia: é o caso do Brasil, da Argentina, e tantos outros paises hermanos.
Nesse jogo, nessa luta entre dois sistemas, vale tudo e cada Sistema luta e se defende com as armas que têm, e como não há um meta-sistema, um Sistema-mãe que resolva familiarmente tais conflitos, cada Sistema se vira como pode.
O Sistema do Contribuinte se especializa no Sistema do Fisco, mais que o Sistema do Fisco nele mesmo, e aprende a jogar com as limitações deste: aprende a encarar o adversário de frente, sem “simulações” ou “dissimulações” – expedientes de jogadas perigosas, sempre sujeitas a cartão amarelo ou vermelho, mas que também revelam falta de categoria e destreza no trato da bola, situação que só denuncia falta de técnica e habilidade – jogada boa é jogada honesta, frente a frente, olhando nos olhos do adversário, que como nos dribles de Garrincha, o marcador sempre sabe para onde o atacante vai, mas não adianta: marcador é marcador e driblador é driblador, não tem jeito: dribla com habilidade, jogando sempre no contra-pé do Sistema adversário que, por mais que insista, pesado e gordo – como sempre é o caso do Sistema do Fisco, não consegue acompanhar a destreza, velocidade, inteligência e habilidade do Sistema do Contribuinte, se não “apelando” ou fazendo falta, mas ai o juiz apita. E o juiz antes de juiz é um homem, ser humano trabalhador, que trabalha e muito, e por mais neutro que seja, sempre sente na pele também, as dificuldades do Sistema Contribuinte, ao qual ele, tal qual os agentes da fazenda e todos nós, também, pertencemos.
11.1 – Sistema do Contribuinte: “jogando” com as formas do direito privado e do direito público
Acreditamos que seja possível – de posse das categorias analíticas trabalhadas neste texto – avançar um pouco mais na compreensão da “fraude a lei” em face do direito tributário. Vamos retornar ao Esquema da aplicação tributária do ESQUEMA-III, aplicado agora ao direito privado: na aplicação institucional que esses “habitantes” fazem das regras disponíveis no Sistema do Contribuinte.
Note-se que os fatos imponíveis no direito tributário são construídos a princípio em sobreposição aos conceitos de direito privado, a cópula estrutural entre o Sistema do Contribuinte e o Sistema do Fisco é, justamente, a forma (aplicação institucional) desenhada, normalmente com plena autonomia, pelo próprio Sistema do Contribuinte. Ou seguindo a nossa metáfora futebolística: a bola começa no pé do Sistema do Contribuinte, é ele que vai para cima do Sistema do Fisco e define a jogada. O Sistema do Fisco já começa na “defesa”.
É sobre a aplicação institucional empreendida pelos habitantes do Sistema do Contribuinte das normas que o próprio Sistema do Contribuinte oferece é que se opera a eventual aplicação conceptual da norma tributária, seguida se for o caso de tributação, de sua correspectiva aplicação institucional, seja por ato do próprio contribuinte, no caso de auto-liquidación, seja do próprio Fisco, no caso de liquidación de ofício pela autoridade administrativa.
11.2 – Enfim, definindo e explicando a “Fraude a lei”
Acreditamos que seja possível, agora, uma tentativa um pouco mais ousada de descrever a “fraude a Lei” em face do direito tributário. Vamos retornar ao nosso Esquema da aplicação tributária, entrecruzando os dois níveis de aplicabilidade – conceptual e institucional – trabalhando-os, simultaneamente, entre os esquemas de aplicação das normas de direito privado e os esquemas de aplicação das normas no direito tributário.
Assim, o que a doutrina parece chamar “fraude a lei” é justamente a disputa sobre a pertinência, validade e eficácia dessas quatro normas – sujeitas a atos concomitantes de aplicação conceptual e institucional – interpretadas e sistematizadas sob a perspectiva dois sistemas diferentes: o Sistema do Contribuinte e o Sistema do Fisco.
O Sistema do Contribuinte sai jogando, em face da legislação tributária, opta licitamente, pela forma privada que ofereça a menor carga tributária, ainda que seja artificiosa, não usual, ela é perfeitamente legal: não há mentira nem ocultação de cadáver. Tudo às claras.
Definindo “fraude a lei” a partir do caso do técnico de futebol (apenas como exemplo e sem a pretensão de configurá-lo, ainda, como “fraude a lei”):
A. O habitante do Sistema do Contribuinte opta por constituir – como ocorre no caso do técnico de futebol – dada configuração jurídica mais favorável à tributação, preparando o suporte fáctico para uma não-incidência ou uma incidência mais benéfica da legislação tributária. Entre diversas possibilidades que o Sistema do Contribuinte e seus experts consultores oferecem, opta por constituir uma empresa (PJ) em consonância com as regras de direito privado (e pagar menos imposto sobre a renda, no caso);
B. Assim, como verificamos no ESQUEMA-VI, desenha o suporte factual F2 para realizar a aplicação institucional da regra civil N2 que regula a constituição de pessoas jurídicas.
C. Configurado o efeito da aplicação institucional E2 – que é a existência da pessoa jurídica e sua pertinência no universo das formulações normativas ao menos ao Sistema Normativo do Contribuinte – resta ao Fisco seguir a aplicação conceptual orientada pelo próprio Sistema do Fisco, sobre a conjunção fáctica do universo de casos desenhado por E2 e F3 (ocorrência do fato gerador renda) e aceitar a aplicação institucional que o contribuinte realizou, mediante os co-respectivos atos de auto-liquidación, ou se for o caso, o Fisco efetivar seu próprio ato de liquidación, aplicando a alíquota mais benéfica ao técnico “X” a fim de obter efeito E4, em conformidade com E3 e de E2.
D. A “fraude a lei” no direito espanhol, parte da eleição como critério relevante da idéia de “negócio artificioso”, gerando a nosso ver muitas vezes na aplicação do próprio dispositivo da lei anti-elusiva problemas de lacuna de reconhecimento. Mas afastada essa dificuldade, existe a necessidade da verificação e tipificação de outro fato imponível, mediante aplicação conceptual da norma tributária gerada pelo próprio Sistema do Fisco. Este seria o famoso “fato imponível efetivo” ou “verdadeiro”, outros ainda, preferem se referir à “verdadeira” substância econômica do negócio acobertada pela astúcia do contribuinte.
E. O expediente normativo é o seguinte: no Sistema do Fisco parte do dado verdadeiro que “X” constituiu PJ só para pagar menos tributo – fato indiscutivelmente verdadeiro, contudo, essa verificação empírica (que exigem provas que geram difíceis problemas de lacunas de conhecimento) permite ao Sistema do Fisco empreender a aplicação conceptual da regra anti-elusiva.
F. A aplicação conceptual dessa regra anti-elusiva, outorga ao Fisco no seu Sistema de referência, a não pertinência do EJ2 (ser PJ) ao Sistema do Fisco. Note-se que, entretanto, a PJ continua pertencendo, ainda, ao Sistema do Contribuinte. Desqualificada e desconstituída a PJ pela aplicação conceptual da regra anti-elusiva, fica desqualificada também a aplicação da norma tributária N3 ao fato imponível F3 em conjunção com o E2 (dado que a PJ não pertence ao Sistema do Fisco). Altera-se, assim, o universo de casos: antes era F3.E2 e, agora, passa a ser F3.E1.
G. E1 é efeito da aplicação conceptual da norma N1 que regula a e constitui a personalidade jurídica das pessoas físicas: “X” está vivo, então é pessoa jurídica. Note-se que esse efeito é reconhecido por ambos sistemas do Contribuinte e do Fisco não há discussão sobre esse ponto: aliás, a existência da personalidade jurídica de “X” é condição necessária para constituir a aludida PJ. (sei que é drástico, mas encontramos aqui uma saída fáctica para “X” não pagar esse tributo: a morte retroativa, anterior a data do evento tributário).
H. Ante esse novo universo factual, fica sem fundamento no sistema do Fisco a auto-liquidación ou liquidación da PJ de “X”, realizada anteriormente: o Sistema do Fisco desconstitui por aplicação conceptual essa norma individual e concreta;
I. Sem essa liquidacíon anterior de “X” feita sobre a forma da PJ, o Sistema do Fisco empreende a qualificação conceptual do “verdadeiro” fato imponível: a pessoa física “X” que auferiu diretamente os vencimentos perante o Palmeiras FC. Diante dessa verificação conceptual, aplica conceptualmente a norma tributária N3′, que obriga “X” a pagar 27,5% de IR sobre o valor total de seus vencimentos.
J. Pronto todo esse aparato conceptual no Sistema do Fisco, é momento de caminhar para a aplicação institucional da regra do Art. 15.1 do LGT, demanda-se o procedimento especial exigido pelo Art. 15.3 e se houver parecer favorável do Conselho Consultivo Fiscal, então, o Fisco consolida a desqualificação institucional da PJ de lançamento, da liquidación anterior e permite, ao final, a aplicação institucional da nova norma tributária N3′, sobre o “fato gerador efetivo”: conjunção fáctica de F3.E1.
K. Enfim, a norma N4 orienta a lavratura de auto de infração que tornará o débito de “X” sob a nova alíquota de 27,5 “liquido e certo”, apresentando como efeito o novo ato de liquidación E4′ (sem a aplicação de multa punitiva, ex vi do Art. 15.3 da LGT).
12 – Conclusões: Diagnóstico, impressões e desafios
A dogmática tributária é essencial para compreendermos a tradição e o desenho de nossos “institutos”. Contudo, nos lindes dessa investigação sobre “fraude a lei”, notamos que – diante da oposição entre as perspectivas e interesses antagônicos do “Sistema do Fisco” e do “Sistema do Contribuinte” – a dogmática estanca-se em problemas conceptuais tão-só superados pela aplicação genérica de “princípios” quase nunca elucidados suficientemente.
O uso indiscriminado de princípios não elucidados, tal qual fossem dados objetivos – simplesmente aplicados ao caso – acaba por obscurecer os interesses e valores efetivamente em jogo no discurso dogmático. Esta banalização no uso dos princípios pela dogmática tributária impede que modelos teóricos justificativos – finos e precisos como o de Atienza/Manero – seja aplicados com maior rendimento.
É necessário, portanto, irmos além da dogmática, utilizando instrumentos de análise mais precisos e efetivos para – antes de “invalidar” com a autoridade da doutrina – “reconstruir” e compreender as complexidades de cada problema em foco.
Nossa tentativa de articular o problema da “fraude a lei” com modelos justificativos, como o mencionado por Schauer e utilizados por Atienza/Manero, relacionando regras e princípios, mostrou que tais perspectivas são muito úteis na compreensão do entorno do direito tributário com a economia, a política fiscal e a moral-social. Contudo, tais modelos perdem força “a priori” quando confrontados pela banalização e pela falta de transparência no uso ordinário de “princípios” na Dogmática tributária.
Diante da notória complexidade do direito tributário e financeiro, premido pela objetividade e transparência que exigem a planificação da atividade empresarial e o controle de receitas e gastos públicos, demanda-se um modelo teórico-explicativo mais preciso, objetivo e transparente.
Entendemos que a “filosofia analítica” oferece este instrumento; o perfil idôneo e o forte controle sintático e semântico do discurso mediante uma Teoria Geral do Direito profunda, fina e poderosa no discurso.
Na aproximação com os filósofos analíticos do direito, a dogmática tributária ganha: a experiência de 30 anos na análise empírica do discurso, o controle lógico da argumentação jurídica, a clareza e objetividade no estilo da exposição e, principalmente, … humor! Afinal que seria de um sábio sem humor? Seria ele mesmo um sábio? O exemplo do estilo das disputas teóricas desta Escola é Pachi (Ricardo Guibourg) atacando as tendências jusnaturalistas de Nino: “Um ateu em busca de Deus”.
Nossa experiência, aplicando o instrumental analítico do Normative Systems ao direito espanhol, muito proximamente do trabalho desenvolvido por Barros Carvalho na dogmática tributária nacional, foi a seguinte:
Primeiro, foi essencial na idéia de fundo de identificar os critérios relevantes do discurso da dogmática para em seguida, num quadro combinatórios destes critérios, diagnosticar o travamento conceptual da doutrina espanhola em torno da idéia de “fraude a lei”, mediante a utilização do ESQUEMA-I;
Segundo, a idéia e a provocação do referencial dos casos empíricos, irritando o sistema do direito e acusando suas inconsistências: as aludidas lacunas axiológicas, de reconhecimento e conhecimento. A precisão da idéia de “caso” no NS também é relevante: no discurso dogmático é comum, alegar como exemplo um caso difícil institucional de inadequação para atingir a lei como um todo, quando a anomalia pode tratar-se de algum aspecto particular do próprio caso.
Terceiro, as noções de aplicação conceptual e aplicação institucional permeiam e explicitam as cadeias eficaciáis das normas, na dinâmica do discurso e da argumentação jurídico-tributária;
Quarto, a dualidade “Sistema do Contribuinte” e “Sistema do Fisco” – espelhada na idéia original de “Sistema do Súdito” e “Sistema do Juiz” – nos permite reconstruir e representar a efetiva e real relação desses dois pólos na prática tributária. Aqui, vale o registro: também nos propiciou a deliciosa metáfora do Fisco pesado e gordo, caindo diante do mero drible de corpo do ágil, rápido, inteligente e arguto contribuinte (é famoso drible da vaca).
Quinto, a aplicação da matriz de casos/soluções do Normative Systems, detalhando o universo dos casos relevantes, mostrou-se um surpreendente instrumento para precisar a distinção entre “fraude a lei” e “economia de opção”, bem como precisar nuanças entre esses dois conceitos;
Sexto, abriu a possibilidade de desenhar todo o percurso normativo do Art. 15 da LGT, bem como diagnosticar as apontadas inconsistências da lei em sua aplicação administartiva e judical: lacunas de reconhecimento (conceitos indeterminados) e conhecimento (provas);
Sétimo, propôs na riqueza da sua literatura pelo menos duas soluções técnicas ao legislador fiscal. Utilizar-se das presunções e ficções para reduzir o diâmetro das “lacunas”;
Oitavo, afastou a retórica e imprecisa alegação que a cláusula anti-elusiva desrespeitava o princípio da legalidade: o fato do negócio artificioso descrito na Lei Geral Tributária, bem como todos os demais fatos e efeitos relevantes no enredo da aplicabilidade e configuração da “fraude a lei” estão previstos em lei.
Nono, não há desrespeito à “tipicidade cerrada”. A tipicidade é da aplicação da regra tributária não do Art.15 da LGT, o novo efeito tributário é obtido com a aplicação de regra tributária em estrito respeito à tipicidade. Também não se objetar o uso de termos indeterminados como “negócio artificioso”: há aqui um problema relacionado com a própria característica “movediça” do fato que sequer descrever. Seria a impossibilidade de descrever precisamente um fato objetivo que sequer evitar pelo direito um limite ao próprio direito?
Décimo, a segurança e a certeza do direito propostas aqui estão vinculadas a uma nova idéia de Justiça, pretensamente objetivada pela análise fina que este instrumental oferece. A idéia de justiça ligada à transparência da argumentação jurídica e a definição clara e objetiva dos pressupostos da análise empreendida.
Enfim, é essencial esclarecer que não obstante tenhamos utilizado o caso do técnico de futebol “X” na exemplificação da aplicação do conceito de “fraude a lei”, parece-nos que tal caso não seria qualificado, aqui, perante a LGT espanhola como fraude a lei: a opção lícita de optar por constituir pessoa jurídica ou pessoa física para efetuar determinado negócio, parece encaixar-se muito mais no caso 6 do ESQUEMA-IV, como economia de opção (planejamento tributário lícito): posto que não é caso de subsunção ao conceito de “negócio artificioso”.
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Schauer, F. 1994. Las reglas en juego. Marcial Pons. Barcelona.
Notas
(01) Aproveitando o rodapé da ilusão, gostaria de dedicar os esforços desse trabalho, em especial e neste momento, aos sete doces bárbaros que de alguma forma, muito próxima, contribuíram com as inquietações, inspirações e reflexões deste trabalho, pela ordem de aparição na minha vida, são eles: GABRIEL IVO, LUÍS CÉSAR SOUZA DE QUEIROZ, PAULO AYRES BARRETO, TORQUATO CASTRO e PAULO CÉSAR CONRADO, respectivamente, Procurador do Estado em Alagoas, Procurador da República no Rio de Janeiro, Advogado em São Paulo, Professor em Recife e Juiz Federal em São Paulo, mas o importante mesmo é que além de suas funções próprias, também como eu, são quase juristas – não por princípio, mas por regra (v. Item 7 deste trabalho) – parceiros de inquietações nesta longa estrada abstrata, todos juntos nesta Escola em esforço comum e amigo para – talvez um dia – nos tornarmos juristas melhores, ao menos (como na referência, sempre bem humorada de PACHI a NINO, em sua busca pela justiça: “um ateu convicto à procura de Deus”), afinal milagres não precisam de fé, espero; se são sete, faltam dois, pela mesma ordem das coisas: DANIEL MENDONCA e PABLO NAVARRO – a eles devo esta minha experiência na UPF – estes sim juristas profissionais, mas que sequer o sabem ou se preocupam com isso, afinal, no final… tudo é conceptual.
(02) Conforme ensina Ferrara, na simulação se faz crer naquilo que não existe, na dissimulação oculta-se o que é. Uma faz com que se acredite falsamente numa situação inexistente, a outra esconde ao conhecimento dos outros um estado real. A simulação provoca uma ilusão externa ao passo que a dissimulação decorre de uma ocultação interna. Dessarte, dissimula-se a ira, o ódio, o rancor. Nas duas hipóteses, contudo, o fim da conduta do indivíduo é enganar, caráter fundamental das várias formas simulatórias. Na simulação quer-se enganar sobre a existência duma situação falsa, na dissimulação sobre a inexistência duma situação real. O referido autor compara a simulação a um fantasma e a dissimulação a uma máscara (FERRARA, Francisco. A simulação dos negócios jurídicos, Campinas : R.E.D. Livros, 1999, p. 50.).
(03) 2005: 663.
(04) Afinal, como ele mesmo ensina, nesta mesma música “(…) cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é…” (Dom de iludir).
(05) UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO.
(6) PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO.
(07) A autuação utiliza a qualificação de simulação.
(08) (2003: 2)
(90) Para compreensão e situação destes problemas no Brasil ver Souza Queiroz, 2006: 711-750.
(10) Revista de Técnica Tributária n. 31
(11) Revista de Técnica Tributária n. 55: 33.
(12) GARCÍA NOVOA (2004: 172).
(13) Utilizaremos o termo “regra” num sentido bastante próximo ao de “norma jurídica em sentido estrito” tal qual adotado por Paulo de Barros Carvalho (2006: xxx).
(14) Norma que define …Barros Carvalho, 2005: XXX.
(15) (BARROS CARVALHO, 2004: 109-112)
(16) (SANTI, 2005: XXVIII-XXIX)
(17) (BARROS CARVALHO, 2005: 47-80)
(18) (SANTI, 2001: 141)
(19) (SANTI, 2003: 40)
(20) (FIORIM, passim).
(21) (SEARLE, passim).
(22) (NAVARRO, 2005: 89)
(23) (MENDONCA, 2000:77)
(24) Sobre a estrutura da norma de competência consultar Peixoto: 2006.
(25) NAVARRO, 2005: 86-93
(27) NAVARRO, 2005: 93.
(27) NAVARRO, 2005: 92.
()28 SANTI, 2001: 87-119
(29) (2005: 122)
(30) (Idem, 2005: 124)
(31) (2005: 192)
(32) (2005: 32)
(33) Conforme terminologia de Barros Carvalho.
(34) (2005: 193).
(35) (Alchourrón e Bulygin, 1987: 63)
(36) (Hart, Derecho y moral, 1962)
(37) (Alchourrón e Bulygin, 1987: 63)
(38) (Idem: 159)
(39) (Idem: 153)
(40) (ATienza e Manero, 2002: 125).
(41) Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar; é ele que me carrega como se fosse levar: sim, a frase é de samba, “Timoneiro” de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, mas diz o essencial: vivemos no mundo e por isso fazemos parte dele; vivemos com outros seres vivos e compartilhamos com eles esse processo vital; construímos o mundo em que vivemos, mas ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum; nossa trajetória de vida nos faz construir nosso conhecimento do mundo, mas este também constrói seu próprio conhecimento a nosso respeito; não somos os mesmos depois de um passeio pela praia, é certo, mas também a praia não será a mesma depois do nosso passeio, no mínimo, nossas pegadas ficarão registradas; as águas de um rio abrem seu trajeto por entre os acidentes e irregularidades do terreno, mas estes também ajudam a moldar o itinerário, pois nem correnteza nem geografia das margens determinam isoladamente o curso fluvial, ele se estrutura de modo iterativo; não só os timoneiros dirigem os navios, mas também as correntes marítimas, os ventos, os acidentes de percurso, as tempestades; em suma, os pilotos guiam, mas também são guiados! Tais pensamentos, assim exemplarmente colacionados, estão na obra “A árvore do conhecimento” e pertencem a dois biólogos chilenos – Humberto Maturana e Francisco Varela – que partindo de um ponto surpreendentemente simples – “a vida é um processo de conhecimento; assim se o objetivo é compreendê-la, é necessário entender como os seres vivos conhecem o mundo” – constituem o que denominam biologia da cognição. (A árvore do conhecimento, p. 9-11).
Fonte: FISCOSoft
Site: Contabilidade São Paulo