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O ICMS e o leilão virtual de mercadorias: Análise da resposta à Consulta nº 465/2011 da Consultoria Tributária do Estado de São Paulo

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I – O escopo deste trabalho

Neste trabalho analisaremos os fundamentos jurídicos contidos na Resposta à Consulta nº 465/2011, de 23 de setembro de 2011 (01), da prestigiada Consultoria Tributária da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo.

Para facilitar sua compreensão, faremos a transcrição do respectivo texto:

ICMS – Venda de mercadoria por meio eletrônico (leilão virtual), em sistema de lances pré-pagos – O valor da operação será a soma do valor pago pelo efetivo adquirente da mercadoria e do valor arrecadado com os lances debitados dos demais participantes.
1) A Consulente informa que está “inscrita no Cadastro de Contribuintes com atividade econômica de intermediação e agenciamento de serviços e negócios em geral, exceto imobiliários e atividade de comércio varejista de outros produtos não especificados anteriormente” e vem, atualmente, desenvolvendo a atividade de leilão virtual.
2) Relata, ao descrever esta operação comercial, que “o cliente compra um pacote de lance que é utilizado para participar do leilão virtual (…) onde se compra diversos produtos (…) pelo preço arrematado no leilão”.
3) Expõe que “adquire os produtos pelo valor de mercado e revende pelo valor arrematado pelo cliente que via de regra é sempre inferior ao valor de compra, tendo em vista que a remuneração da empresa vem das vendas dos cupons que dão direito ao lance”.
4) Menciona que “as mercadorias arrematadas são entregues pela Consulente ou diretamente pelo fornecedor através do procedimento de venda à ordem, em conformidade com o artigo 129, § 2º, do RICMS/SP”, afirmando também que “terá estoque físico de mercadoria”.
5) Aduz que, “no momento do recebimento da Nota Fiscal de venda emitida pelo fornecedor, [escritura] a entrada, inclusive com direito ao crédito, quando for o caso” e, “no momento da entrega da mercadoria ao arrematante, [emite a] Nota Fiscal de venda pelo valor arrematado com destaque do ICMS, quando for o caso”.
6) Argumenta que, “considerando o fluxo fiscal descrito, o estabelecimento sempre terá saldo credor” e que “não está sujeita as obrigações acessórias, prevista na Portaria CAT nº 156/2010, por não prestar serviço de intermediação comercial, mas sim atividade de compra e venda”.
7) Isso posto, “requer resposta ao seu entendimento, de que está correta a aplicação do procedimento descrito”.
8) É necessário elucidar, preliminarmente, que esta Consultoria Tributária já teve a oportunidade de analisar situação semelhante, exarando entendimento no sentido de que a atividade pretendida pela Consulente é uma forma de venda de mercadorias em meio eletrônico. No presente caso, em princípio, não parece ocorrer qualquer tipo de prestação de serviço, mas somente a venda de mercadorias. De fato, o que ocorre é a saída de mercadoria de seu estabelecimento, ou de terceiro (seu fornecedor) por sua conta e ordem (artigo 129, § 2º, do RICMS/2000), sem que a natureza da operação deixe de se caracterizar como a de circulação de mercadorias, independentemente do regime de tributação adotado (artigo 2º, incisos I e VIII, do RICMS/2000, aprovado pelo Decreto nº 45.490/2000).
9) A peculiaridade da operação está na maneira como as mercadorias são pagas pelo sistema de lances. Uma pessoa cadastrada no site, através da prévia aquisição de “pacote de lance”, paga pelo direito de lances na compra de uma determinada mercadoria. Quem der o lance vencedor adquire a mercadoria por um preço geralmente bastante reduzido. Todas as pessoas que deram lances, ainda que não tenham obtido êxito em adquirir a mercadoria, já pagaram o custo dos lances. Ou seja, a Consulente recebe, além do dinheiro devido pelo efetivo adquirente da mercadoria, o dinheiro relativo a todos os lances daqueles que participaram da disputa. Trata-se de uma situação em que o valor total da operação de venda é pago por várias pessoas, embora apenas uma delas fique de fato com a mercadoria.
10) Por conseguinte, saliente-se que o ICMS incide sobre todo o valor pago por uma mercadoria, ainda que esse valor se caracterize como o somatório das quantias pagas por todas as pessoas que deram lances – inclusive por quem efetivamente recebe a mercadoria, uma vez que os valores referentes a seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos concedidos sob condição, também integram a base de cálculo do ICMS, incidente sobre as operações com mercadorias (Lei Complementar 87/96, art. 13, § 1º, II, “a”; Lei 6.374/89, art. 24, § 1º, item “1”, na redação dada pela Lei 10.619/2000, art. 1º, XIII).
11) Sendo assim, ao utilizar a base de cálculo correta (conforme explicitado no item anterior), não parece, em princípio, haver possibilidade de ocorrência de saldo credor relativamente à operação descrita.
12) Registre-se, ainda, que, efetuando a Consulente a venda de mercadorias sujeitas ao regime jurídico-tributário da substituição tributária com cobrança antecipada do imposto, sugerimos a leitura dos artigos 261 e seguintes do RICMS/2000.
13) Por fim, se a Consulente estiver procedendo de forma diversa do descrito nesta resposta à consulta, deverá procurar o Posto Fiscal a que estiverem vinculadas as suas atividades a fim de regularizar seus procedimentos, valendo-se do instituto da denúncia espontânea previsto no artigo 529 do RICMS/2000, no prazo que vier a ser comunicado.

Em síntese, os fundamentos e conclusões considerados por aquele Órgão são os seguintes:

– A pessoa jurídica que promove o leilão é a própria titular da mercadoria leiloada;

– A revenda, originada do leilão, realiza-se diretamente para a pessoa do lance vencedor ou então pelo regime de venda à ordem, previsto no §2º do art. 129 do RICMS/SP;

– A aquisição da mercadoria a ser leiloada dá-se pelo preço normal de mercado, mas é revendida pelo preço da arrematação, por vezes menor que aquele;

– Esta distinção de preços para a aquisição e para a revenda da mercadoria afeta diretamente a apuração do ICMS;

– Os participantes adquirem pacotes de lances para participar do respectivo leilão;

– A empresa titular da mercadoria leiloada recebe tanto o dinheiro originário dos lances (perdedores), quanto do lance vencedor que resulta na compra em definitivo da mercadoria;

– O valor da operação, para fins de composição da base de cálculo do ICMS, é representado pelo somatório dos dinheiros recebidos por todos os lances, não obstante apenas um (o vencedor) tenha sido necessário para a aquisição da mercadoria; isto porque a base de cálculo deste imposto deve ser composta por todos os valores referentes a seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos concedidos sob condição, (Lei Complementar nº 87/96, art. 13, § 1º, II, “a”; Lei nº 6.374/89, art. 24, § 1º, item “1”, na redação dada pela Lei nº 10.619/2000, art. 1º, XIII); e

– O débito do ICMS deve ser relação a esta base de cálculo e não de acordo com o valor do lance vencedor no leilão.

II – O tratamento jurídico dispensado ao leilão virtual privado

O subtítulo deste trabalho propositalmente faz referência ao leilão privado, para nos afastarmos das hipóteses de que trata o Decreto Federal nº 21.981 de 1932 (02), ou então do artigo 17 e seguintes da Lei Ordinária Federal nº 8.666 de 1993, com suas alterações que versa sobre os bens públicos.

Fora deste contexto, portanto, a relação entre pessoa que pretende leiloar mercadoria de sua titularidade e terceiros (pessoa física ou jurídica), interessados em adquiri-la, reger-se-á pelas normas do Código Civil de 2002, particularmente pelas que versam sobre contratos e a sua respectiva formação.

De acordo com o que foi exposto por aquela manifestação da Consultoria Tributária, dois são os cenários fáticos sobre os quais devemos pesquisar o respectivo tratamento normativo. O primeiro que diz respeito à aquisição do pacote de lances por aquele que irá participar do leilão da mercadoria.

O segundo que se refere à própria aquisição da mercadoria posta em leilão, mediante a apresentação do lance considerado vencedor.

Duas aquisições que são regidas por plexos normativos igualmente diversos. Senão vejamos.

No primeiro cenário, na medida em que se menciona que há a aquisição do “pacote de lances”, devemos considerar que alguém o vendeu e alguém o comprou.

O lance, assim, passa a ser um bem econômico tutelado pelo direito que, juridicizando-o, regula a sua constituição, bem como a forma de sua transferência de uma para outra pessoa. Relação jurídica de compra e venda deste direito.

Neste primeiro cenário, portanto, os direitos e obrigações recíprocos entre tais pessoas restringem-se à compra e venda do direito de participar deste leilão e realizar lances.

Não diz respeito à compra e venda da mercadoria propriamente dita, pela simples razão de que a pessoa que a leiloa não se obriga a realizar sua tradição (art. 1.267 (03) do CC/02) ao adquirente do pacote de lances, mas apenas e tão somente a permitir que participe do leilão, mediante os respectivos lances.

A tradição dar-se-á tão somente para aquele que vencer o leilão, quando então se concretiza a relação jurídica de compra e venda da mercadoria. Isto significa dizer que o direito assegurado ao participante do leilão é o de dar o lance e a obrigação da pessoa que leiloa a mercadoria é o de considerar este lance como firme entre os vários possíveis lances que se realizem durante o leilão.

Trata-se, assim, de um contrato atípico, fundado na liberdade de contratar (art. 421 c/c art. 425 (04) do CC/02), que tem por objeto a alienação de um direito, qual seja, o direito de participar do leilão, mediante apresentação de lances. Ao adquirente, o direito a tal participação no leilão. Ao alienante, a obrigação de permiti-lo participar. O preço, o firmado entre aquele e este e que, de acordo com a Resposta à Consulta, refere-se ao preço pelo “pacote de lances”.

É importante que se diga que este primeiro cenário também não se confunde com aquele em que o participante do leilão faz apenas sua inscrição em determinado endereço eletrônico da rede mundial de computadores, com a aposição de suas informações pessoais, habilitando-se, a partir daí, a realizar os lances no leilão.

Em tal situação não há a alienação de um direito, porque inexiste preço para esta habilitação. Esta fase de habilitação não representa um contrato em si considerado, mas apenas e tão somente as respectivas tratativas preliminares que, nas palavras de Venosa (05), dizem respeito à fase pré-contratual do contrato de compra e venda de mercadoria celebrado mediante oferta pública. Aqui, um único contrato. Lá (no primeiro cenário), um primeiro contrato coligado (06) ao segundo, o de compra e venda de mercadoria que também se realizará mediante oferta pública do vendedor.

Delimitado este primeiro contrato de aquisição do direito de participar do leilão, vejamos como se comporta o segundo, que tem por objeto a compra e venda da mercadoria posta em leilão. Seu tratamento normativo não se limita às disposições contidas nos art. 481 e seguintes do Diploma Civil, porquanto sua formação dá-se de acordo com o que estabelece art. 429 do mesmo Diploma que, por sua vez, se reporta ao art. 427. Façamos, assim, a transcrição destes dispositivos:

Art. 429. A oferta ao público equivale a proposta quando encerra os requisitos essenciais ao contrato, salvo se o contrário resultar das circunstâncias ou dos usos.
Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.

Pelos aspectos inferidos a partir da transcrição da referida Resposta à Consulta nº 465/11, a oferta pública realizada pela pessoa jurídica que pretende negociar mercadoria de sua titularidade faz referência ao lance vencedor e não a qualquer lance.

Logo, as propostas que se sucedem no leilão são firmes porque versam sobre a vontade declarada dos respectivos titulares de adquirir a mercadoria.

No entanto, é pressuposto da oferta da pessoa jurídica que deseja alienar a mercadoria que a sua aceitação (07) será somente daquela que atingir preço dado até um determinado tempo (dia/hora/minuto).

A formação deste contrato de compra e venda, portanto, opera-se pelo lance do participante do leilão que for considerado vencedor, assim considerado aquele que atender às exigências contidas na oferta pública e for declarado aceito pela pessoa jurídica ofertante da mercadoria.

Superada esta etapa de formação, rege-se o contrato de compra e venda entre o vencedor do leilão e a pessoa ofertante da mercadoria pelas citadas regras prescritas no Código Civil em vigor. No entanto, há um detalhe a ser observado que diz respeito à liquidação do preço consignado naquele lance declarado vencedor.

Com efeito, estamos considerando o exposto na mencionada Resposta à Consulta nº 465/11, de acordo com a qual a pessoa interessada em participar do leilão adquire com determinada quantia de dinheiro este direito de realizar lances. Não explicita a aludida manifestação da Consultoria Tributária de que forma há a liquidação do preço relacionado ao lance vencedor. Vale dizer, a liquidação para fins de aquisição da mercadoria leiloada.

Diante disto, iremos considerar duas hipóteses para tal liquidação.

A primeira é a que considera que a pessoa titular do lance vencedor, faça o pagamento desta mercadoria com novos dinheiros. A segunda prevê que esta liquidação será realizada levando-se em conta aqueles dinheiros dados para a participação do leilão.

Nesta primeira hipótese, tanto aquele contrato que enseja a participação no leilão, quanto este que trata da venda da mercadoria serão liquidados pelo modo mais comum de extinção, que é a o adimplemento mediante o pagamento em dinheiro.

Na segunda, porém, o modo de liquidação não será com dinheiro, mas sim com o direito adquirido pelo participante do leilão de ofertar lances. Ter-se-á a liquidação mediante dação em pagamento, prevista no art. 356 (08) do Código Civil de 2002. A pessoa titular da mercadoria posta em leilão consente em aceitar que o respectivo preço seja liquidado por outro modo que não dinheiro. O direito por ele adquirido de participar do leilão.

Isto posto, vejamos os reflexos tributários no que pertine ao ICMS.

III – O âmbito de incidência do ICMS

Não desceremos a minúcias a respeito do espectro de incidência do ICMS, haja vista estar sacramentado no âmbito doutrinário e jurisprudencial que este tipo tributário atinge apenas e tão somente as operações que digam respeito à circulação de mercadorias, assim consideradas as que promovam a transferência da titularidade jurídica da mercadoria negociada (09).

Neste sentido, diferentemente do anterior e já extinto Imposto sobre Vendas e Consignações – IVC, o ICM(S) possui um campo de incidência, desde sua instituição pela Emenda Constitucional nº 18 de 1965, bem mais amplo, porque onera não apenas aquelas transferências de mercadorias originadas de contratos típicos de compra e venda e de consignação, mas todo e qualquer negócio jurídico que implique a transferência jurídica da mercadoria.

Também não há qualquer empecilho para fins da incidência do ICMS o fato de a liquidação do preço ajustado entre a pessoa alienante da mercadoria e a que deu o lance vencedor do leilão realizar-se por meio de pagamento em dinheiro ou por dação. Isto porque, como apontamos acima, a extinção de obrigação por dação regula-se por normas contidas no Código Civil de 2002, sobre as quais a legislação tributária não possui qualquer competência para interferir ou mesmo para negar seus efeitos, consoante apregoa os arts. 109 e 110 (10) do Código Tributário Nacional – CTN.

Assim, a regra matriz do ICMS incidirá sobre todo e qualquer negócio jurídico que tenha por objeto operações de circulação de mercadorias, sendo irrelevante, para este fim, a análise sobre o modo de extinção das obrigações havidas no âmbito deste negócio jurídico.

IV – Análise das conclusões da resposta à Consulta nº 465/11

Firmados tais pressupostos, passamos à analise das conclusões da referida manifestação da Consultoria Tributária de São Paulo, particularmente a parte que afirma que a base de cálculo do ICMS compreenderá todos os valores recebidos pela pessoa responsável pela realização do leilão; vale dizer, não apenas aqueles relacionados à pessoa que venceu o leilão, mas também daqueles outros concorrentes cujos lances restaram vencidos.

Façamos novamente a reprodução do item da aludida Resposta a Consulta, para bem evidenciar tal conclusão:

10) Por conseguinte, saliente-se que o ICMS incide sobre todo o valor pago por uma mercadoria, ainda que esse valor se caracterize como o somatório das quantias pagas por todas as pessoas que deram lances – inclusive por quem efetivamente recebe a mercadoria, uma vez que os valores referentes a seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos concedidos sob condição, também integram a base de cálculo do ICMS, incidente sobre as operações com mercadorias (Lei Complementar nº 87/96, art. 13, § 1º, II, “a”; Lei nº 6.374/89, art. 24, § 1º, item “1”, na redação dada pela Lei nº 10.619/2000, art. 1º, XIII).

Parece-nos que aquele prestigiado Órgão fazendário concluiu de forma equivocada, valendo-se de dispositivo normativo que não é aplicável para o contexto fático em questão.

Com efeito, como exposto anteriormente, o âmbito de incidência do ICMS compreende os negócios jurídicos que impliquem a transferência da titularidade jurídica de mercadorias. É bem mais amplo se compararmos, como feito acima, com o campo de projeção do antigo IVC, pois este colhia apenas os contratos de compra e venda e de consignação mercantil previstos na Parte Geral, já revogada, do Código Comercial de 1850.

Todavia, conquanto mais extenso, o conteúdo da prestação deste negócio jurídico onerado pelo ICMS acaba por restringir sua incidência. Tal prestação deverá ser um ato traslativo da propriedade de mercadoria, que, por regra, identifica-se a um bem móvel e tangível.

Não estamos dizendo com isto que o ICMS não possa incidir sobre operações com direitos (bens intangíveis). Há exceções a esta regra. Mas para que se realizem, tais direitos ou bens intangíveis deverão assumir a condição de mercadoria.

Sirva de exemplo a orientação da STF que validou a tributação dos negócios jurídicos celebrados com softwares qualificados como de prateleira, porque a Corte identificou, naquele caso concreto, operações reiteradas que permitiam qualificar que seu objeto, não obstante um direito relacionado à cessão do direito de uso do software, havia se tornado mercadoria para o respectivo titular, porque negociava este direito como tal.

Vejamos a ementa deste julgado:

EMENTA:
I. Recurso extraordinário : prequestionamento mediante embargos de declaração (Súm. 356). A teor da Súmula 356, o que se reputa não prequestionado é o ponto indevidamente omitido pelo acórdão primitivo sobre o qual “não foram opostos embargos declaratórios”. Mas se, opostos, o Tribunal a quo se recuse a suprir a omissão, por entendê-la inexistente, nada mais se pode exigir da parte (RE 210.638, Pertence, DJ 19.6.98).
II. RE: questão constitucional: âmbito de incidência possível dos impostos previstos na Constituição: ICMS e mercadoria. Sendo a mercadoria o objeto material da norma de competência dos Estados para tributar-lhe a circulação, a controvérsia sobre se determinado bem constitui mercadoria é questão constitucional em que se pode fundar o recurso extraordinário.
III. Programa de computador (“software”): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de “licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador” ” matéria exclusiva da lide “, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo – como a do chamado “software de prateleira” (off the shelf) – os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio. (Recurso Extraordinário nº 176.626/SP – DJU de 11/12/1998, pág. 10)

Mas tal orientação não pode ser interpretada como a admissão pela Carta de 1988 para o ICMS onerar bens intangíveis quaisquer. Na realidade, como se vê claramente na segunda parte do item III desta ementa, este paradigmático precedente do STF apenas qualificou como mercadoria um determinado bem intangível, porque seu proprietário praticava operações com o mesmo que davam a entender ser ele um comerciante deste tipo de bem (intangível).

Assim, para se qualificar como mercadoria, é imprescindível que o titular do bem intangível atue como comerciante, fazendo desta atividade um fim negocial.

Feitos estes esclarecimentos, voltemos para o cenário da Resposta à Consulta nº 465/11.

Seu entendimento foi o de que a venda da mercadoria leiloada seria tributada normalmente pelo ICMS, porque estava, de fato, materializada a hipótese de incidência deste imposto (operações relativas à circulação de mercadorias – bens móveis tangíveis).

Todavia, em nossa opinião, equivocou-se ao sustentar que a base de cálculo seria o valor relativo ao do lance vencedor, somado de todos os demais lances realizados por outras pessoas naquele leilão, porque estes se qualificariam como despesas ou outras importâncias pagas ou debitadas que devem ser oneradas por este imposto, a teor do que prevê a Lei Complementar Federal nº 87/96 (art. 13, § 1º, II, “a”), bem como a Lei Ordinária de São Paulo nº 6.374/89 (art. 24, § 1º, item “1”, na redação dada pela Lei nº 10.619/2000, art. 1º, XIII).

Ora, se tomarmos de empréstimo a clássica definição doutrinária de que a base de cálculo tem por função típica estabelecer a perspectiva economicamente dimensível do fato gerador (11) e se este materializa-se na operação relativa à transferência da titularidade jurídica da mercadoria leiloada para a pessoa cujo lance declarou-se vencedor, não há apoio normativo para pretender incluir, em tal base de cálculo, aqueles valores relacionados aos lances vencidos no leilão.

Isto significa dizer que todas as demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas serão unicamente aquelas que ocorrem no contexto desta relação de compra e venda definitivamente firmada entre a pessoa que aliena a mercadoria leiloada e a pessoa que a adquire, porque teve seu lance aceito.

Não há, como exposto acima, relação de compra e venda de mercadoria entre a pessoa titular do leilão e as demais pessoas que adquiriram o “pacote de lances”, porque entre estas a relação negocial tem por objeto unicamente o direito de participar do leilão e ofertar lances. Estes valores, portanto, não se qualificam como despesas ou outras importâncias pagas ou debitadas da operação de compra e venda entre a pessoa que aliena a mercadoria no leilão e a pessoa que a adquire por ter seu lance vencido os demais.

Têm origem própria e, no contexto examinado, vinculam-se exclusivamente àquela relação jurídica que tem por objeto a compra e venda do direito de participar do leilão, mediante a realização de lances.

Como visto acima, este tipo de relação poderá até ser submetida à incidência do ICMS, porque assim admite a Suprema Corte nas hipóteses em que os direitos tornam-se objeto de negociação como típicas mercadorias. Mas neste caso, darão ensejo a relações tributárias próprias, distintas daquela referente à mercadoria leiloada. Nesta, o objeto da prestação será sempre um bem móvel tangível. Naquelas, bens móveis intangíveis. Uma não interfere nas outras e vice versa.

Outro dado relevante e paradoxal advindo da conclusão sustentada na Resposta à Consulta nº 465/11 é o de que, caso o adquirente da mercadoria (vencedor do leilão) seja também contribuinte do ICMS e a utilize para revenda ou para consumo em seu processo de industrialização, dando ensejo a nova incidência deste imposto, terá o direito de apropriar o crédito respectivo a esta aquisição.

Em tal situação, como calcular este crédito? Imagine-se a seguinte hipótese:

– Lance vencedor: R$ 100,00

– Base de cálculo considerando todos os lances efetuados: $ 1.000,00 ($100,00 do lance vencedor + $900,00 dos lances vendidos)

– Alíquota (12): 18%

Ora, se a regra de incidência considerar como base de cálculo apenas o valor relativo ao lance vencedor, será de $18,00 o débito do ICMS que constará na nota fiscal a ser emitida pela pessoa que alienou a mercadoria no leilão. Por outro lado, se considerar a tese sustentada pela Resposta à Consulta em tela, o débito será de $180,00.

Haverá, assim, um inegável conflito entre o valor pago pelo vencedor e o valor do ICMS destacado na nota fiscal. De fato, embora o vencedor do leilão tenha realizado um lance de $100,00, receberá uma nota fiscal com débito de ICMS de $180,00. Poderá, então, apropriar estes $180,00 a título de crédito em sua escrita fiscal?

Se tivermos em mente a previsão do art. 59 do RICMS/SP, a resposta será positiva. Vejamos a redação deste dispositivo:

Art. 59. – O imposto é não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação ou prestação com o anteriormente cobrado por este ou outro Estado, relativamente à mercadoria entrada ou à prestação de serviço recebida, acompanhada de documento fiscal hábil, emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco (Lei nº 6.374/89, art. 36, com alteração da Lei nº 9.359/96).
§ 1º – Para efeito deste artigo, considera-se:
1 – imposto devido, o resultante da aplicação da alíquota sobre a base de cálculo de cada operação ou prestação sujeita à cobrança do tributo;
2 – imposto anteriormente cobrado, a importância calculada nos termos do item precedente e destacada em documento fiscal hábil;”

Mas nos parece difícil de acreditar que a fiscalização paulista acatará esta consequência imediata da conclusão manifestada na Resposta à Consulta nº 465/11, porque, em tal situação, embora o preço de aquisição da mercadoria tenha sido de $100,00, o contribuinte adquirente será premiado com um crédito de $180,00 pelo Estado de São Paulo.

Obviamente que estamos trabalhando com este cenário, do qual discordamos, para demonstrar que a Consultoria Tributária equivocou-se ao tentar sustentar que os valores dos lances vencidos assumam a condição de despesas ou quantias acessórias ao efetivo preço de aquisição da mercadoria. Não o são, como já expusemos neste trabalho, e não podem se sujeitar à incidência do ICMS, pelo menos nesta qualidade de valores acessórios ao preço efetivo de aquisição da mercadoria pelo vencedor do leilão.

Em suma, somos da opinião que, no contexto analisado pela Resposta à Consulta nº 465/11, o ICMS deve onerar unicamente o preço relacionado ao lance que resultou vencedor no leilão da mercadoria.

Notas

(01) Acesso em 05/07/2013, às 15h44m.
http://info.fazenda.sp.gov.br/NXT/gateway.dll?f=templates&fn=default.htm&vid=sefaz_respct:vrespct

(02) Regula a profissão de leiloeiro no território brasileiro.

(03) Art. 1.267. A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição.

Parágrafo único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico.

(04) Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

(05) Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, São Paulo – SP: Editora Atlas, Volume 2, 2009, pág. 502.

(06) Do tipo coligação por dependência, nas palavras de Orlando Gomes. Contratos, Rio de Janeiro – RJ: Editora Forense, 26ª Edição, 2009, pág. 121.

(07) Ainda nas sábias palavras de Orlando Gomes (op. cit., pág. 76), “aceitação é a aquiescência a uma proposta. O aceitante integra sua vontade na do proponente, emitindo declaração expressa, realizando atos que a exteriorizam, ou, até, silenciando, quando deveria falar.”

(08) Art. 356. O credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida.

(09) A propósito citamos, como exemplo, as Súmulas nº 573 do STF e a nº 166 do STJ.

(10) Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

(11) Ataliba, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária, São Paulo, SP: Editora RT, 4ª edição, 1987, pág. 108.

(12) Não iremos trabalhar com a regra do cálculo por dentro.

– Publicado pela FISCOSoft em 15/07/2013