Imposto Estadual sobre transmissão “Causa Mortis” e doação (ITCMD) – exigência ilegal em face de bens transferidos aos sócios por ocasião da liquidação da Sociedade
Foi preciso que o Tribunal de Justiça de São Paulo se debruçasse sobre o tema para dizer o óbvio: os bens recebidos a título de distrato da sociedade não se submetem ao ITCMD.
Rogério Pires da Silva
Quarta-feira, 29 de abril de 2015
Recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o campo de incidência do ITCMD permite identificar que os limites da lei são cada vez mais desrespeitados pela fúria arrecadatória. A aparente ausência de barreiras para a “interpretação” fazendária – aliada à ausência de punição para os excessos da fiscalização – conduz ao absurdo lançamento fiscal que somente o Poder Judiciário pôde obstaculizar nos autos da apelação cível 0007687-15.2013.8.26.0053 (processo julgado em 8.9.2014).
Em suma, naquele caso a Corte paulista houve por bem anular débito fiscal de ITCMD lançado pela autoridade fazendária do Estado de São Paulo em face (dentre outros) de transmissão de bens da sociedade aos sócios, por ocasião da liquidação regular da empresa.
O absurdo salta aos olhos porque na liquidação da sociedade não há transmissão “causa mortis”, e de doação também não se pode cogitar – mas a autoridade fazendária interpretou que no caso concreto os bens teriam sido transferidos pela sociedade aos sócios por mera “liberalidade” daquela, e com amparo nessa leitura dos fatos formalizou o lançamento do ITCMD, antevendo suposta “doação” sujeita ao imposto.
Foi preciso que o Tribunal de Justiça de São Paulo se debruçasse sobre o tema para dizer o óbvio: os bens recebidos a título de distrato da sociedade não se submetem ao ITCMD.
De fato, a Constituição outorga aos Estados (e ao Distrito Federal) a competência para instituir e cobrar o imposto sobre “transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos” (art. 155, I), e o Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66, com eficácia de lei complementar em razão da matéria) estipula que nem mesmo a lei pode alterar a “definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias” (art. 110).
A doação é negócio jurídico definido expressamente no art. 638 do Código Civil(Lei 10.406/02): “Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.”
Já a liquidação de sociedade é negócio jurídico totalmente distinto (arts. 51, 1.033 e ss., e especialmente 1.102 e ss., do Código Civil), em virtude do qual a transmissão de bens pela sociedade aos sócios decorre de partilha de haveres (idem, art. 1.103, IV), jamais por mera “liberalidade” da sociedade.
Tais conceitos de direito privado são relevantes, portanto, para a delimitação do campo de incidência do ITCMD, e não havendo fraude ou simulação – posto que isso não foi sequer aventado pela fiscalização no caso concreto – não se pode confundir a doação sujeita ao tributo e o pagamento de haveres aos sócios na liquidação de sociedade de pessoas.
O lançamento original contemplava ainda a cobrança do imposto em face de doação de imóveis efetivamente ocorrida, mas regularmente submetida à incidência do tributo. Neste caso, a doação de imóveis do pai para cada um de seus três filhos foi feita por escritura pública, com divisão igualitária, de modo a aquinhoar cada donatário com 1/3 (um terço) dos imóveis – e cada quinhão acabou ficando abaixo do limite de isenção do imposto, que é de duas mil e quinhentas UFESP (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo), de conformidade com o art. 6º, inciso II, alínea “a”, da Lei Estadual 10.705/00 (reproduzida no art. 6º, II, “a”, do Decreto Estadual 46.655/02, que regulamenta aquele diploma).
Ocorre que uma das donatárias, por engano, declarou ao fisco federal ter recebido em doação o valor total dos imóveis, e com base tão somente nessa declaração ao fisco federal a autoridade fazendária estadual partiu do pressuposto de que a referida donatária, na verdade, teria recebido todos os imóveis – pelo que recusou fé à escritura pública de doação dos imóveis, lançando o ITCMD supostamente devido pela referida donatária em face do valor integral dos imóveis doados.
Ora, o valor da soma dos imóveis doados ultrapassou o limite de isenção acima referido, mas é fora de dúvida que a donatária não possuía capacidade contributiva para arcar com o imposto – eis que, ao fim e ao cabo, recebeu apenas 1/3 (um terço) dos imóveis – e de todo modo a regra de isenção prevalece para cada doação isoladamente considerada.
De mais a mais, a escritura de doação é documento público. E é vedado ao Estado negar fé ao documento público (art. 19, II, da Constituição Federal). Por isso mesmo não poderia prevalecer no lançamento do ITCMD, contra o próprio documento público, a mera declaração (equivocada) entregue pela donatária ao fisco federal.
Tais elementos foram simplesmente ignorados pela fiscalização estadual no caso concreto, novamente com base numa suposta liberdade de “interpretação” da autoridade fazendária. Como se os imóveis pudessem ser considerados inteiramente transmitidos a um só dos donatários apenas em razão da declaração (unilateral) por ele prestada ao fisco federal.
A esta altura é irrelevante se houve equívoco naquela declaração, como se pode facilmente constatar, porque bens imóveis não podem ser considerados transmitidos (independente do negócio jurídico: doação ou compra e venda, não importa) por singela declaração de uma das partes. A lei exige instrumento público para esse tipo de transação (art. 108 do Código Civil), e o instrumento público prevalece – como é evidente – em detrimento de qualquer outra manifestação de vontade.
Como se não bastasse, a manifestação de vontade do contribuinte (dotada ou não de equívoco) é irrelevante para fazer nascer a obrigação de pagar o tributo, pois em nosso direito tributário a obrigação é “ex lege” – ou seja, só há tributo devido quando ocorrida, na realidade dos fatos, a hipótese de incidência prevista abstratamente na lei.
De todo modo, a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo no caso concreto demonstra que há certo despreparo dos servidores no trato da matéria – revelando a necessidade de que o fisco redobre a atenção no treinamento de seus agentes fazendários (com ênfase nos elementos de direito tributário e nos fundamentos de direito privado essenciais à atividade de quem está encarregado de lançar o ITCMD).
É preferível acreditar que essa deficiência foi a única causadora do lançamento impugnado no processo em epígrafe; a prevalecer a ideia de que a tese fazendária resultou de uma interpretação “possível” da norma em vigor – e se essa interpretação se difundir para vitimar outros contribuintes – o já assoberbado Poder Judiciário remanescerá como último limite para corrigir erros elementares das autoridades fazendárias.
Fonte: Migalhas