Por Alessandro Cristo
Uma das últimas grandes batalhas tributárias no Judiciário, a queda de braço sobre a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins começa a reaquecer. Acórdão recente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que tradicionalmente decide a favor do fisco em ações sobre o tema, atendeu pedido de uma empresa para que os valores recebidos de clientes usados para o repasse do ISS incidente sobre as vendas fossem excluídos da base de cálculo da Cofins, contribuição federal que incide sobre o faturamento bruto. Embora trate de cobrança municipal, a decisão se baseia nos mesmos argumentos usados na disputa envolvendo o imposto estadual.
A guinada é exemplo do que a demora do Supremo Tribunal Federal em resolver a questão pode causar nas instâncias inferiores. Esperando desde 2007 por uma definição, a primeira e a segunda instâncias tiveram de represar, em vão, durante mais de três anos, processos sobre o tema, que ficaram sobrestados por força de uma liminar prorrogada por três vezes pelo Supremo, proibindo julgamentos. O prazo acabou no fim de 2010, sem que sequer um voto fosse proferido. A decisão do TRF-3, publicada em setembro, é a primeira de que se tem notícia em segundo grau, depois da quarentena.
Ajuizada em outubro de 2007, a Ação Declaratória de Constitucionalidade 18 foi adotada pelo STF como definidora do caso, em substituição ao Recurso Extraordinário 240.785. A questão está no Supremo há pelo menos 14 anos. O julgamento do recurso já tinha sete votos — seis a favor dos contribuintes, e um contra — quando foi interrompido, enquanto estava sob vista do ministro Gilmar Mendes.
A estratégia da Advocacia-Geral da União foi interpor uma ação de controle concentrado, que tem prioridade sobre casos difusos, para impedir uma derrota certa. Funcionou. Dois ministros que haviam votado contra o fisco já se aposentaram: Sepúlveda Pertence e Cezar Peluso. Ayres Britto, que também votou com os contribuintes, deixa a corte em novembro. A discussão só não deve recomeçar do zero se os ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Marco Aurélio mantiverem-se contra a inclusão do imposto, como votaram no recurso extraordinário.
A última movimentação do caso foi em 25 de março de 2010, quando os ministros, por maioria, prorrogaram, pela última vez, a eficácia de medida cautelar que paralisou os julgamentos em todo o país. O prazo venceu em dezembro do mesmo ano, depois de 180 dias da decisão.
A necessidade de um ponto final foi lembrada na última segunda-feira (1º/10) pela Ordem dos Advogados do Brasil. O vice-presidente da entidade, Alberto de Paula Machado, protocolou no STF pedido de urgência no julgamento da ADC 18, evocando o princípio da razoável duração do processo. “Não obstante o julgamento da Ação Penal 470 ocupar em demasia a atenção de cada julgador e a dinâmica de funcionamento da Corte, sobretudo por sua relevância social e complexidade, outros temas também merecem especial prioridade”, disse o vice-presidente na petição endereçada ao ministro Celso de Mello, relator da ADC 18. Segundo ele, tem havido “grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre a matéria” da ação.
Um desses processos foi julgado no dia 20 de setembro pela 6ª Turma do TRF-3. Em acórdão relatado pela desembargadora Regina Helena Costa, por maioria, o colegiado deu provimento a Apelação da empresa Triumpho Associados Consultoria de Imóveis Ltda contra decisão de primeiro grau envolvendo a inclusão do ISS na base de cálculo do PIS e da Cofins.
Para a relatora, o alcance do PIS e da Cofins não ultrapassa o faturamento das empresas. “Se alguém fatura ICMS, esse alguém é o Estado e não o vendedor da mercadoria”, disse ela, citando frase do ministro Marco Aurélio em voto no recurso extraordinário que tramitava no STF. “Faturamento, na redação original do mencionado dispositivo constitucional [o artigo 195, inciso I, alínea “b”, da Constituição Federal], em síntese, é a riqueza obtida pelo contribuinte no exercício de sua atividade empresarial, sendo inadmissível a inclusão de receitas de terceiros ou que não importem, direta ou indiretamente, ingresso financeiro”, completou.
Segundo a desembargadora, o mesmo raciocínio vale para o ISS. “O valor correspondente a este não se insere no conceito de faturamento, nem no de receita, quer porque as empresas não faturam impostos, quer porque tal imposição fiscal constitui receita de terceiro — município ou Distrito Federal.”
“É uma rara decisão proferida no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, uma vez que, na maioria dos julgados conhecidos até o momento sobre a matéria, esse órgão colegiado entende devida a inclusão dos tributos na base de cálculo das contribuições sociais”, diz o advogado Geraldo Soares de Oliveira Junior, do escritório Soares de Oliveira Advogados Associados, que patrocinou a causa.
O sobrestamento determinado pelo STF em 2010 não impediu que a Justiça decidisse a questão a favor da Associação Comercial e Industrial de Presidente Prudente, representada pelo advogado Dimas Alberto Alcantara, do escritório Alcantara Advogados e Associados. A entidade obteve Mandado de Segurança que proibiu a Receita Federal de cobrar de seus associados PIS e Cofins sobre os valores referentes a ICMS em poder das empresas. A sentença é do dia 6 de agosto de 2010 e foi assinada pelo juiz federal Sócrates Hopka Herrerias, então substituto na 3ª Vara Federal de Presidente Prudente.
Álamo tributário
Segundo estimativas do governo, o impacto anual de uma derrota no STF na ADC 18 seria de R$ 12 bilhões no orçamento, além dos cerca de R$ 89,4 bilhões que a Receita teria de devolver de uma só vez aos contribuintes. Os valores fazem da discussão uma das bandeiras mais caras para a advocacia tributária do país, depois de derrotas marcantes no Supremo, principalmente em relação à cobrança da Cofins de sociedades de profissionais liberais e ao direito ao crédito-prêmio do IPI das indústrias.
“É a mais ampla questão em debate e, por isso mesmo, a que trará mais problemas na análise judicial”, avalia o professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo Fernando Facury Scaff. “A discussão atinge a todo e qualquer ser físico ou jurídico neste país.” Para Dalton Miranda, do escritório Trench, Rossi e Watanabe, o tema é um dos mais relevantes no Judiciário devido ao impacto econômico-financeiro que pode causar tanto aos contribuintes quanto ao erário.
Para Maurício Faro, advogado do Barbosa, Müssnich & Aragão e membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, do Ministério da Fazenda, as repercussões podem ser ainda maiores. “Não é a última grande batalha, mas talvez seja a mais relevante do ponto de vista econômico, já que além dos valores referentes ao ICMS na base do PIS e da Cofins discutidos na ação, o raciocínio estabelecido na conclusão desse julgamento vai ser necessariamente aplicado ao ISS na base de cálculo das mesmas contribuições”, adianta.
Para Luiz Cláudio Allemand, presidente da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, levar em consideração o impacto econômico da discussão insere na equação um elemento estranho ao Direito. “Questão jurídica não se debate com números. É o Direito que deve receber atenção, a tese jurídica. Do contrário, vira uma discussão política-econômica. É por isso que a doutrina anda esquecida nos tribunais”, critica. Segundo ele, a questão é cara ao poder público federal porque o PIS e a Cofins são contribuições cuja arrecadação não é dividida com estados e municípios.
Meninas dos olhos
Embora de menor impacto econômico, outras batalhas já se enfileiram na lista de casos cruciais para os tributaristas. São elas a tributação, pelo Imposto de Renda e pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, de empresas coligadas ou subsidiárias de brasileiras no exterior — cujo valor em discussão é estimado em R$ 36,6 bilhões —; a incidência de Cofins no faturamento integral das instituições financeiras (R$ 17 bilhões); a lista de insumos dedutíveis no total a pagar de PIS e Cofins não cumulativos e a constitucionalidade desse regime (R$ 75,5 bilhões); e a constitucionalidade da inclusão da CSLL na base de cálculo do IR (R$ 14,8 bilhões), além da trava anual de 30% para o aproveitamento do prejuízo fiscal para abatimento no valor do Imposto de Renda das pessoas jurídicas (sem estimativa). Ainda fora do Judiciário, a briga bilionária pelo aproveitamento do ágio pago por companhias que compram outras empresas — valor acrescido ao preço com base na expectativa de lucros futuros da comprada — para abatimento do IR e da CSLL já gera debates acalorados no tribunal adminitrativo do fisco federal.
“É extremamente relevante para o país o desfecho da constitucionalidade do artigo 74 da Medida Provisória 2158-35, dispositivo que impõe às empresas brasileiras com atividades no exterior o ônus de pagar imposto no Brasil, mesmo que os lucros no exterior não tenham sido distribuídos”, lembra ainda o professor Luís Eduardo Schoueri, que também leciona Direito Tributário na USP. “Do ponto de vista técnico, a ADI 2.588 não está decidida e dificilmente terá uma conclusão. O tema voltará ao Plenário do Supremo sob a forma de repercussão geral.” Segundo ele, além da questão constitucional, o tema vai gerar polêmica quando envolver acordos de bitributação assinados pelo país.
Com decisões esparsas pelo país — três delas no TRF-3 —, o debate sobre a fixação, via regra infralegal, do cálculo do preço de transferência para importação de matéria-prima por indústrias brasileiras ainda amadurece no Carf, mas em breve deve chegar ao STF, na opinião de Schoueri. “Caso a Câmara Superior do Carf venha a se posicionar pela legalidade da Instrução Normativa 243/2002, os contribuintes certamente apelarão ao Judiciário e o Supremo deverá se manifestar se é constituicional uma medida que exige que uma indústria que resolva importar matéria-prima para fabricar no país deva ter uma margem de lucro de 150% — e se não tiver tamanho lucro, deva pagar imposto como se tivesse —, ao passo que, se os mesmos produtos fossem importados acabados, exigir-se-ia uma margem de 20% sobre o preço de venda.”
“As teses não vão acabar nunca. É a dinâmica do Direito”, diz Igor Mauler Santiago, do Sacha Calmon Misabel Derzi Consultores e Advogados. “Teremos sempre grandes casos à espera de conclusão enquanto houver processos que se acumulam, anos a fio, sem solução judicial adequada ou cujas decisões são contraditórias”, completa Heleno Taveira Torres, outro professor de Direito Tributário da USP. Para ele, o Supremo ainda não aprendeu a usar a repercussão geral para reduzir o número de processos. “Já são mais de 400 processos afetados, cujo resultado só faz acumular processos nos tribunais, e não mais no STF.”
Para Alisson Carvalho, do Ulhoa Canto, Rezende e Guerra Advogados, emplacar novas teses tem sido mais difícil devido ao maior preparo e ao monitoramento constante dos procuradores da Fazenda Nacional. “Nas décadas de 1980 e 1990, devido à crise econômica, o governo editava regras sem amparo na Constituição, o que dava ensejo a teses em massa, o que acontece em menor escala hoje”, diz.
Sem estimativa financeira, mas também de cunho tributário, a discussão sobre os limites do sigilo fiscal dos contribuintes para com o fisco, que envolve a Lei Complementar 105/2001, também promete virar novela. O resultado do julgamento deve afetar a fiscalização da Receita e a análise de crimes tributários. Para a tributarista Mary Elbe Queiroz, que defende a posição do fisco, não pode existir sigilo fiscal em relação a pessoas jurídicas, que “têm que declarar e registrar contabilmente tudo o que está na conta bancária”.
Clique aqui para ler o pedido de urgência da OAB.
Clique aqui para ler a sentença em favor da Associação Comercial e Industrial de Presidente Prudente.
Apelação Cível 0011081-13.2007.4.03.6100 (TRF-3)
Mandado de Segurança 2007.61.12.007171-6 (Justiça Federal de Presidente Prudente)
Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 8 de outubro de 2012