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Fisco usa atos de polícia para aumentar taxas

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Por Igor Mauler Santiago

Mesmo tendo erigido as contribuições em espécie tributária autônoma[1], o Supremo Tribunal Federal cuidou de despojá-las de qualquer singularidade que pudessem reivindicar face aos impostos: caráter sinalagmático (paga-se sem a certeza de uma contraprestação: entesouramento das receitas de Cide[2]; ou por vantagem já auferida: contribuição previdenciária dos servidores inativos[3]), referibilidade (paga-se em benefício de terceiros: extensão às empresas urbanas da contribuição para o Incra[4]), ou o que mais fosse[5].

Resta a distingui-las pouco mais do que o nome, pois a decantada vinculação do produto arrecadado: (a) pode falhar, como na DRU (ADCT, artigo 76); (b) ocorre também nos empréstimos compulsórios (CF, artigo 148, parágrafo único: seriam eles contribuições?); e (c) verifica-se por exceção mesmo nos impostos (CF, artigos 167, parágrafo 4º, 198, parágrafo 2º, e 212, p.ex.).

Seja como for, as sucessivas concessões pretorianas fizeram das contribuições um tributo frouxo, um autêntico salvo-conduto para virtualmente toda pretensão arrecadatória da União[6].

Avanços semelhantes têm sido intentados pelos diversos Fiscos em direção às taxas, como mostram exemplos recentes.

O fato gerador desse tributo é a prestação efetiva de serviço público específico e divisível, fruído pelo particular ou posto à sua disposição (neste último caso, quando de utilização compulsória), ou o efetivo exercício do poder de polícia (CF, artigo 145, II; CTN, artigo 79, I, b).

Descabida, pois, a cobrança de taxa pela mera utilização de bem público, como declarado pelos Tribunais Superiores quanto à exação pelo uso do espaço urbano por concessionárias de serviços públicos (STF, Pleno, RE nº 581.947/RO, Rel. Min. EROS GRAU, DJe 27.08.2010[7]; STJ, 2ª Turma, RMS nº 12.081/SE, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 10.09.2001).

Descabida, ainda, a exigência de taxa pela prestação potencial de serviço, antes que haja dispêndio específico de recursos públicos em favor do particular. É o caso da taxa pela utilização potencial do serviço de extinção de incêndio, cuja convalidação pela jurisprudência consideramos equivocada (STF, Pleno, RE nº 206.777/SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, DJ 30.04.99; STJ, 1ª Turma, RMS nº 21.607/MG, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJ 03.08.2006).

Com efeito, uma coisa é a utilização potencial de serviço deveras realizado, que legitima, p.ex., o lançamento de taxa de coleta de lixo contra o proprietário de imóvel fechado. Outra, a prestação apenas potencial do próprio serviço, que nem a Constituição nem o CTN admitem como fato gerador de taxa — donde concluirmos que a taxa de incêndio dissimula imposto sobre a propriedade imobiliária, que os Estados não podem instituir.

Ilegítima, da mesma maneira, a imposição de taxa de polícia por fiscalização (a) potencial, (b) desnecessária ou (c) impossível, quer se trate de impossibilidade de fato ou de direito.

Sobre o primeiro ponto, é certo que o STF considera a existência de órgão fiscalizador em regular funcionamento como bastante para justificar a exigência da taxa, dispensando o Estado de provar que vistoriou cada um dos estabelecimentos visados (STF, 1ª Turma, RE nº 115.213/SP. Rel. Min. ILMAR GALVÃO, DJ 06.09.91). Isso não equivale, no entanto, a admitir fiscalização potencial, mas simplesmente a reconhecer que há casos em que esta dispensa a visita porta a porta, podendo ser efetivamente praticada a distância, por meio de imagens de satélite (controle ambiental) ou por mecanismos mais simples (observação de fachadas, na fiscalização de publicidade).

Atendidas tais condições — existência de estrutura estatal ativa e suficiente para o fim pretendido, e possibilidade de controle remoto da conduta do particular — a presunção em prol do Estado se instaura, desde que ademais a fiscalização seja possível e necessária. Neste estrito contexto, e tratando-se de atividade permanente, há espaço também para a incidência periódica do tributo.

Desnecessária, v.g., é a reiteração anual da fiscalização de equipamentos urbanos imóveis (postes, orelhões, abrigos em pontos de ônibus, etc.). Uma vez regularmente instalados, e enquanto não houver mudanças na legislação de regência, é intuitivo que permanecerão dentro dos padrões, não se justificando a renovação do gravame.

Impossível, no plano dos fatos, é a fiscalização de ato inexistente. Tome-se a taxa de fiscalização de instalação de equipamentos de telecomunicação (TFI), criada pela Lei 5.070/66. A teor do Anexo à Resolução Anatel 255/2001, esta seria devida inclusive na renovação da licença de funcionamento da empresa telefônica — ato de natureza cadastral que não acarreta nova instalação de equipamento algum e que, portanto, não pode dar azo a cobrança de nova taxa de fiscalização de instalação.

Impossível, no plano jurídico, é a fiscalização por uma pessoa política, com imposição de taxa, de atividade cuja disciplina é reservada a outra, certo como é que a competência tributária para a instituição de taxas está atrelada à competência administrativa para a prática dos atos que lhes servem de fato gerador (CTN, artigo 80).

Tomem-se as taxas de controle das atividades minerárias recentemente instituídas pelo Amapá (Lei estadual 1.613/2011), por Minas Gerais (Lei estadual 19.976/2011) e pelo Pará (Lei estadual 7.591/2011).

Ora, os recursos minerais são bens da União (CF, artigo 20, IX), à qual incumbe, privativamente, discipliná-los por lei (CF, artigo 22, XII) e conceder a particulares os direitos de sua pesquisa e lavra (CF, artigo 176, parágrafo 1º).

Aos estados e municípios, sem prejuízo da União, cabe apenas “registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos … minerais em seus territórios” (CF, artigo 23, XI), e não o exercício das atividades concedidas, como agora se pretende. Trata-se de ato cartorial que até poderia ensejar a cobrança de taxa que lhe cobrisse os custos, os quais não guardam qualquer relação com a quantidade de minério extraído, critério ilegitimamente adotado pelas leis estaduais[8].

Com isso se passa das questões relativas ao fato gerador das taxas — discutidas até agora — àquelas atinentes à sua quantificação.

Sujeitando-se ao princípio da retributividade, e não ao da capacidade contributiva (que o artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição vincula aos impostos), as taxas devem limitar-se (a) para cada contribuinte, ao custo dos atos estatais que lhe são destinados (STF, Pleno, ADI nº 2.551-MC-QO/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 20.04.2006) e, (b) em sua arrecadação, ao custo global da prestação do serviço ou da manutenção do aparato fiscalizador considerado (STF, Pleno, RE nº 232.393/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ 05.04.2002).

É certo que a aferição desses valores, com a precisão de reais e centavos, revela-se impraticável. Mas admiti-lo não equivale a dar um cheque em branco ao legislador, que — por força do princípio do não-confisco — deve obediência ao custo aproximado, verossímil, dos atos estatais; no dizer do STF, à “equivalência razoável entre o custo real dos serviços e o montante a que pode ser compelido o contribuinte a pagar” (Pleno, Rp. nº 1.077/RJ, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ 28.09.84).

Nessa busca, respeitados os limites do razoável, tem-se admitido a fixação da taxa e das custas judiciais segundo o valor da causa, da taxa de coleta de lixo na proporção da área do imóvel e da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental da Lei 10.165/2000 — cujo projeto elaboramos, ao lado dos amigos Sacha Calmon e Eduardo Maneira — considerando-se o porte do estabelecimento e o grau de poluição ou de utilização de recursos naturais da atividade por ele exercida[9].

Mas nada justifica o fato, que testemunhamos há pouco, de uma empresa ser autuada em mais de R$ 250 milhões a título de uma taxa federal de polícia (e isso só de principal, sem contar as multas e os juros) ou referenda a declarada expectativa do Amapá, de Minas Gerais e do Pará de arrecadarem R$ 150 milhões, R$ 500 milhões e R$ 800 milhões com as suas respectivas taxas minerárias, pois em nenhum desses casos o gasto público sequer passa perto de tais extravagâncias.

E nem cabe falar em extrafiscalidade, porque a limitação ao custo dos atos estatais impede a extrapolação do tributo para fins regulatórios e porque não-raro — caso da mineração — a competência para legislar sobre a atividade pertence a pessoa diversa daquela que taxa os seus aspectos ancilares (aqui, o registro), à qual não sobra espaço para opinar sobre a conveniência ou a oportunidade de seu exercício.

Há 30 anos, Geraldo Ataliba antevia “o caos e a negação da ordem jurídica [n]o dia em que o Estado, não podendo ou não querendo mais elevar os impostos, começar a inventar atos de polícia e multiplicá-los e repeti-los, só com o intuito de receber as respectivas taxas”[10].

A tanto foram relegadas as contribuições, e a batalha neste front está perdida. O que será das taxas, agora que se implementa a triste profecia?

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[1] STF, Pleno, RE nº 138.284/CE, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ 28.08.92.

[2] STF, Pleno, ADI nº 2.925/DF, Rel. para o acórdão Min. MARCO AURÉLIO, DJ 04.03.2005.

[3] STF, Pleno, ADI nº 3.128/DF, Rel. para o acórdão Min. CEZAR PELUSO, DJ 18.02.2005.

[4] STF, 2ª Turma, AgRg no Ag. nº 761.127/MG, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJe 14.05.2010. A matéria será revista pela Corte, dada a superação, no RE nº 630.898 RG/RS (Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJe 28.06.2012), da anterior decisão que lhe negava repercussão geral (RE nº 578.635 RG/RS, Rel. Min. MENEZES DIREITO, DJe 17.10.2008).

[5] Tais particularidades seriam esbatidas apenas nos casos excepcionais em que a Constituição elege o fato gerador das contribuições sem compromisso com a ideia de pertinência a um grupo: CSLL, PIS, COFINS, etc., sem por isso deixarem de ser a regra (MARCO AURÉLIO GRECO. Contribuições: uma figura sui generis. São Paulo: Dialética, 2000, p. 242-243).

[6] Os Estados e Municípios só as instituem em hipóteses bem determinadas.

[7] Ver especialmente os votos dos Min. RICARDO LEWANDOWSKI e MARCO AURÉLIO.

[8] Curiosamente, as leis deixam de instituir a única taxa para que teriam competência: a de registro nos cadastros estaduais, que todas criam, de acompanhamento das concessões de pesquisa, lavra, exploração e aproveitamento de minérios nos respectivos territórios.

[9] De notar que o valor máximo da exação não passa de R$ 2.250,00, dos quais até 60% podem ser compensados com taxa estadual congênere efetivamente paga, muito longe dos abusos de que agora cuidaremos – Anexo IX e art. 17-P da Lei nº 6.938/81, na redação dada pelo citado diploma.

[10] Estudos e Pareceres de Direito Tributário, vol. 3. São Paulo: RT, 1980, p. 242.

Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Revista Consultor Jurídico, 5 de setembro de 2012.